O homem que viveu três vezes e morreu quando quis
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António nasceu em janeiro de 1911, quando já havia República há três meses e pouco. Para ter a certeza de que valia a pena, esperou que por cá andassem 11 irmãos e irmãs, ali perto da Póvoa de Lanhoso. Por causa das coisas.
Pode imaginar-se como seria a vida no início do século passado numa aldeia do Minho encostada ao Gerês. Mas isso não o deve ter incomodado, porque medrou. Por aí ainda estavam o czar Nicolau da Rússia, o kaiser Guilherme da Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Viveu a Primeira Guerra Mundial e, com pouco mais de seis anos, terá ouvido falar da partida de milhares de portugueses para o campo de batalha, de onde muitos não voltaram. Por cá, assistiu aos excessos republicanos e ao golpe de 1926, viu mais do que consciente a ascensão paulatina ao poder de Salazar, que ia abocanhar o país e um povo durante décadas. Nunca o quis ver por perto, porque sempre desconfiou dos poderes.
Mas a vida continuava. Foi crescendo, destinado, porque tinha jeito para a gestão das terras e quintas da família. Em 1939, tinha ele 28 anos, o Mundo endoideceu de novo, e atravessou outra Guerra Mundial.
Quase chegado aos 30, António tomou uma decisão que chocou aqueles que o rodeavam: ia estudar, custasse o que custasse. Parece que ninguém ou quase ninguém o compreendeu. Para quê meter-se nos livros se vivia confortavelmente e as quintas prosperavam e davam sustento e rendimento mais que abundante? Não cedeu. Acredito que tenha encarado o projeto à maneira antiga, como quem planeia o lavrar de um campo antes das chuvas.
Iniciou nessa altura a sua segunda vida. Num ano, apresentou-se aos exames da quarta classe. E já estava. No ano seguinte, os exames do que no meu tempo se chamava o Ciclo. E já estava. Nos dois anos seguintes, concluiu o Liceu e apresentou-se ao exame de admissão à Faculdade. E pronto.
Desandou para o Porto para estudar Engenharia, ali na Rua dos Bragas. Deve ter comido o pão que o diabo amassou (nunca lhe ouvi uma queixa sobre o assunto), mas não interessava. Formou-se sem atrasos, porque o tempo não estava para comodidades.
Naquele Portugal bafiento e triste, poucos conheciam mais do que a capital do distrito onde tinham nascido (e viva o velho...). Ele, porém, meteu-se ao caminho com um irmão e foi viajar por essa Europa fora, sempre com a sede de ver e de conhecer que o devorava.
Perto dos 50, terá achado que era altura de assentar. E ala para a sua terceira vida, de longe a mais feliz. Casou, assentou, encontrou a sua paz. Teve filhos quando alguns já eram avós e a esperança de vida não ultrapassava, creio, os sessenta e tal anos. Amou a mulher e a família, entregou-se-lhes completamente, cedência radical em alguém que sempre fizera o que entendera dever fazer, se necessário sozinho, contra tudo e contra todos.
Homem tão livre quanto discreto, educou os seus na liberdade. Aos filhos, exigia "boas notas", mais nada. Supuseram estes que o pai não os veria licenciados, porque era a lei da vida. Obviamente, no entanto, lá estava a abraçá-los um a um. Admitiram depois que não estaria num mestrado, ou noutro doutoramento, ou nos netos. Mas lá estava evidentemente a olhá-los, recuado e feliz.
Aos 99 anos, declarou de forma determinada que ainda cá ficaria durante algum tempo. E, como o tinha decidido, é claro que cumpriu - porque era um resistente e, de facto, muito teimoso.
Batidos os 102 anos, António entendeu que já chegava: podia partir. Mas só quando os filhos estivessem todos, porque um pai não morre sem a mulher e os filhos junto a si. Um, chegava nesse dia. Outro, tinha chegado de muito longe no dia anterior, para partir no dia seguinte. Morreu terça-feira, porque era quando todos iam estar. Nesse dia, choveu como há muito não se via. Não era chuva, eram os céus a chorar. Porque António tinha decidido morrer.
Bem sei que não se dão conselhos a Deus. Mas, conhecendo a peça, é bom que Deus o acolha com cuidado, que o trate com amor ou como ele entenda dever ser tratado. Porque, se o não fizer, arrisca-se a que Lhe dê cabo do juízo.
António foi, e é, o meu pai.