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Se Oscar Wilde vivesse hoje teria motivos de sobra para escrever “O retrato de Dorian Gray” ao contrário. No livro do escritor irlandês, um homem que fez um pacto com o diabo nunca envelhecia e deparava-se apenas com a crueldade e a fealdade da passagem dos anos quando se olhava ao espelho. Atualmente, nesse espelho amplo, mundial e inesgotável, onde nos mostramos na melhor versão, o exercício seria reverso: as rugas e o desgaste estariam fora do reflexo, apenas vivendo no espaço físico - uma vez que o virtual é benigno, sorridente, encantador, cheio de likes e tbt (“throwback thursday”, pensamentos nostálgicos).
Mas esta é uma teoria inacabada. Umas horas de distúrbios em Torre Pacheco bastariam para contrariar a minha inspiração. Afinal, os pensamentos dementes, doentes, vingam é nesse espelho amaldiçoado onde se clama por linchamentos arbitrários, onde se colocam fotografias e nomes e se lhes imputam crimes nunca cometidos, onde se aplaude entusiasticamente o cerco criminoso a jornalistas. Os canais de Telegram, alguns entretanto fechados pela Polícia espanhola, qual gasolina para a extrema-direita, inundaram-se de racismo, de xenofobia, de rancor, de ódio, refletiram o que há a rodos por aí. Acorreram a Múrcia elementos de várias cidades de grupos anti-imigração, que têm vindo a realizar reuniões internacionais com movimentos nacionalistas de diferentes países europeus, também de Portugal. Não lhes basta que quem bateu num idoso seja detido, não lhes basta que quem cometa um crime seja devidamente punido, todos têm de pagar, gritam, enquanto acreditam viver um momento histórico em que desempenham o papel de salvadores da pátria.
Difundiram-se vídeos falsos, entre os quais os de um idoso que foi agredido não em Múrcia, mas em Almería, não por marroquinos ou tunisinos, mas por espanhóis que estão detidos. Os jornais espanhóis tentaram explicar o "bulo" (mentira), em letras gordas, mas foram pouca água para os grupos e subgrupos municipais e regionais desses movimentos onde se exibem suásticas e onde se apela a uma resposta civil, patriótica, nada ordeira, nada legal contra aquele novelo de nós no cérebro.
O primeiro vídeo que vi dos distúrbios foi gravado por uma mulher que gritava da varanda: “Estão a deixar as crianças com medo de saírem de casa. Muito corajosos sois, muito valentes assim de cara tapada. Olhem só quem está a limpar as ruas? São estes senhores imigrantes que estão há anos em Espanha”. Admirei-lhe a coragem de gritar a poucos metros contra um grupo de homens de cara coberta, tronco nu, empunhando catanas no ar. São sempre menos os que fazem demasiado barulho, mas é contra a desordem que o humanismo tem de gritar ainda mais alto.