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Como na esmagadora maioria das vezes, convirá perspectivar os acontecimentos na óptica do inquilino. A inauguração do Teatro do Bolhão foi a melhor notícia que o Dia Mundial do Teatro poderia dar ao inquilino no seu dia de solenidade. Este inquilino que é cidade, poluída por um desastre cultural de anos e anos de abandono, vê ressurgir uma força vital de encontro que só o desgosto intima, agora com uma autarquia que faz da cultura uma arma que não é de arremesso. A força de bloqueio acabou e até as escadas do novo teatro têm o nome daqueles que as ajudaram a construir. Foi também com a força da sociedade civil da cidade e do país que se reergueu o Palácio do Bolhão, após nove anos de intermináveis obras entre o encanto e o desalento, com o fantasma da propriedade em forma de assombro e assombração: desde que, em 1844, o conde do Bolhão - António Alves de Sousa Guimarães - assumira o papel do proprietário e festivo burguês das mais badaladas noites do Porto, mais parecia que emparelhara o seu súbito declínio pessoal e ruína com o fim do palácio em nome próprio, de cuja morte simbolicamente cuidava como emblema e alegoria da vida ou queda do fausto da elite portuense do século XIX. O Palácio já teve, outrora, outros proprietários. Mas agora está definitivamente devolvido ao seu inquilino, à sua cidade, o seu império.
O custo de recuperação do teatro elevou-se mas não ultrapassou a fasquia do razoável. Se atentarmos às inúmeras salas, ao intenso trabalho de restauro de pinturas e talhas dos alguns dos melhores artistas portugueses do século XIX, os 2,8 milhões de euros mais parecem uma pechincha chinesa. Se a compra do edifício (classificado como Monumento de Interesse Público) pela Câmara Municipal do Porto permitiu alimentar o sonho de mais de uma década de António Capelo e de toda a equipa da Academia Contemporânea do Espectáculo (ACE), só o recurso a fundos comunitários do QREN, ao Ministério da Educação, à Secretaria de Estado da Cultura, ao (já extinto) Ministério da Cultura e ao mecenato empresarial e individual permitiu dar tecto ao sonho de raiz. Porque essa fundação sempre existiu. Uma raiz de pensamento que arrebata os agentes culturais da cidade a pensar o futuro mesmo quando cultiva flores no deserto durante anos a fio. Assim foi no Coliseu e no Rivoli. Assim aconteceu na criação do Museu de Serralves e na recuperação da casa do conde de Vizela. Assim se sonhou no Bolhão.
A cedência camarária do Palácio do Bolhão à ACE pelo período de 50 anos é traço de quem premeia o mérito e percebe a virtude e o privilégio. O serviço de educação do teatro não deverá ter mãos a medir no momento em que o esplendor do edifício entrar na rota turística de quem faz da cidade do Porto um destino de eleição. A complementaridade com a escola pode traçar este destino como uma força viva da arte e da história, aquela que conta do passado e daquela que conta do que há-de vir. É possível dizer-se que, para quem nunca viu o mar, uma gota de água pode ser o seu oceano e é verdade que não vivemos tempos de abundância. Mas quem conhece a força da cultura como cimento de identidade e pertença sabe bem que já não se pode pescar à rede indiscriminadamente. As escolhas, singulares e reconhecíveis, impõem-se. A batalha da ACE não foi só uma luta ganha, antes a prova de que o tempo demora e se encosta tantas vezes à eternidade mas não deixa de encontrar acerto quando se ajustam os ponteiros à mão.
Para perceber a perspectiva do inquilino é fundamental ter presente que é ele que enfrenta o lapso dos dias e vive todas as noites sob o mesmo tecto, aguentando o Inverno. A teatralização da vida não é só um salvo-conduto dos artistas, a representação do papel é também uma rotina dos sobreviventes. Para esta cidade que parece reencontrar o iluminismo de supetão pelo virar duma página de esquina, está guardado o momento em que consiga colocar em rede todas as suas estruturas e arrasar os seus conflitos. Visão de condomínio. Com o Rivoli e o Teatro do Bolhão a ressurgir, com o Coliseu em vapor, é urgente retirar a Casa da Música do olho do furacão no momento em que está a celebrar dez anos de existência. Para que não haja condes, nem fantasmas nem ninguém que arrisque assombrar esta visão nobre do Porto ponto. De cultura.