Sob a mais notável indiferença do país, decorreu um dia destes, no Parlamento, o "debate" do "plano de recuperação e resiliência" que o sr. eng.º Costa Silva preparou para o dr. Costa.
Corpo do artigo
O dr. Costa tinha avistado o referido engenheiro na televisão, e foi paixão à primeira vista. "Aqui está o homem capaz de fazer o guião que nos vai regenerar", pensou o primeiro-ministro, já em fadiga do mandato que recebeu há menos de um ano. Como antes deste engenheiro e deste Costa, outros não se haviam enganado.
As prateleiras estão pejadas de biografias destes salvadores, particularmente os do século XIX, onde, muito a propósito, até ocorreu um período que ficou conhecido, precisamente, por "Regeneração". Parafraseando o Medeiros Ferreira, todos estes beneméritos passaram a maior parte da vida pública deles - a voluntária e a involuntária - a ser levados em ombros até aos respectivos cemitérios políticos. Eles, os seus "planos", a sua incontinência vazia, os seus farfalhudos diagnósticos.
Este "plano" é uma espécie de memorandum do futuro empréstimo, uma palavra nossa conhecida desde quase a fundação da nacionalidade. Vai para Bruxelas, para a Europa, como uma espécie de letra de câmbio. Nós prometemos um país novo e vocês ajudam a pagar fartamente. O regime, nas entidades PS e PSD, até já dividiu as tropas pelas "comissões de coordenação e desenvolvimento regional" que vão ser "eleitas" - já foram - pelos drs. Costa e Rio.
Na língua de pau do eng. Costa Silva, é tudo "essencial", "fulcral", "fulcral" e "essencial", na melhor tradição "trovadoresca" do impasse fundamental português. O doutor Cavaco, na pujança do "cavaquismo", também pediu a Miguel Esteves Cardoso que compilasse umas "grandes opções do plano" para um ano qualquer. E todos ainda nos recordamos de Guterres, no Coliseu, a exibir as "conclusões" dos "estados gerais do PS", qual Moisés agarrado à tábua dos Dez Mandamentos.
Num livro de 2005, adequadamente intitulado "O impasse português", Manuel Maria Carrilho resumiu a frivolidade do exercício. "A multiplicação dos diagnósticos" nasce, não para ter consequências, "mas para consolação da alma nacional".
"O mais desesperante, na vida como na política, é quando percebemos que, ingénua ou cinicamente, se está a lidar com problemas novos com base em respostas há muito esgotadas", escreveu então. É a eterna ilusão "de que o que nos sobra em saber difuso compensa o que nos escasseia em acção concreta". Nunca compensou.
*Jurista
o autor escreve segundo a antiga ortografia