<p>O presidente da República fez ontem saber que apreciou, até ao final da X Legislatura, 1817 diplomas. Destes, promulgou 1799, tendo exercido o seu poder de veto político 12 vezes, sempre em relação a diplomas da Assembleia da República. Cavaco Silva já nos tinha dito, quando partiu para férias, que era necessário um jipe - e dos grandes - para transportar todos os diplomas postos à sua consideração. A "boutade" escondia, no entanto, a verdadeira dimensão do problema: o chefe de Estado esteve, desde que tomou posse, quase sempre mergulhado na produção legislativa do Governo e do Parlamento. As contas mostram a trabalheira: Cavaco apreciou mais de 33 diplomas por mês, à razão, portanto, de mais de um por dia. É obra! </p>
Corpo do artigo
Nota igualmente relevante: desta miríade de diplomas, apenas 324 foram aprovados pela Assembleia da República e os restantes 1475 pelo Governo. Isto é: o número de actos do Executivo liderado por José Sócrates enviados para Belém foi mais de quatro vezes superior aos diplomas enviados pelo Parlamento.
Leitura inocente deste facto, que se não é inédito andará lá perto. No início de uma nova Legislatura e com um novo Governo, Cavaco Silva achou por bem fazer um balanço da sua actividade. Vistas assim as coisas, trata-se apenas de um enfadonho exercício, feito recorrendo a uma catrefada de números que pouco, ou mesmo nada, interessam ao português comum. As contas que os cidadãos hão-de pedir a Cavaco Silva, caso ele se recandidate ao cargo, não terão seguramente a ver com a panóplia de diplomas que apreciou, promulgou ou vetou.
De modo que a leitura que deve fazer-se desta iniciativa é política. O que o chefe de Estado está a dizer é: não me podem acusar de ter sido, em qualquer momento, uma força de bloqueio. Desde logo, porque, como o próprio lembra, nenhum diploma que lhe chegou às mãos vindo do Governo foi sujeito a veto.
Mantendo a coerência (qualidade que muitos reconhecem ao chefe de Estado), Cavaco está também a dizer que, numa conjuntura diferente e politicamente muito mais difícil do que a anterior, o Governo pode contar com ele. Não será por causa de Belém que as coisas correrão mal ao novo Executivo de Sócrates. O presidente lá estará para despachar os diplomas, com a mesma ou maior celeridade do que a usada na X Legislatura.
Numa palavra, Cavaco promete esquecer o mal gerado pelo "caso das escutas" e regressar à famosa cooperação estratégica. Temo que o que aí vem lhe tolde as boas intenções. Desejando-o ou não, é evidente que o chefe de Estado estará, nos próximos anos, no epicentro de uma Legislatura inevitavelmente marcada por um contínuo braço-de-ferro entre os partidos com assento parlamentar. A corda começa a esticar quando Sócrates apresentar as caras do novo Governo. Para que lado partirá? Não se sabe. Sabe-se que Cavaco não quer que parta para o seu.