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O Inferno na Terra. É assim que António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, descreve o que se passa em Ghouta, subúrbios de Damasco, capital da Síria, um enclave controlado pelos rebeldes que combatem o regime de Bashar Al Assad. Não é uma descrição exagerada, como pode testemunhar qualquer um que assista de raspão a um telejornal ou circule pelas redes sociais e tropece nas imagens de destruição. Os caças, as explosões, os edifícios esventrados, a metralha, o desespero no socorro, as vítimas entre os escombros. E, sobretudo, as crianças mortas. Uma já seria de mais. Mas, por estes dias (como noutros antes destes, que já esquecemos), contam-se às dezenas os corpos de pequenos inocentes enrolados em mortalhas.
Um Inferno que começou em julho de 2011, com o que se julgou então ser a chegada da Primavera Árabe à Síria, ou seja, a semente de uma revolta popular e democrática contra um regime despótico com tendências homicidas. Uma centelha de liberdade que se desfez em cinzas. Os protestos nas ruas rapidamente deram lugar a uma guerra civil entre esbirros e tropas leais a Assad e uma constelação de grupos armados, alguns com enfeites democráticos no nome, outros assumidamente fundamentalistas religiosos, até ao ponto de se ter gerado a predominância ideológica e física do chamado Estado Islâmico, que substituiu a Al Qaeda no imaginário ocidental como referência máxima e sangrenta do terrorismo.
Finalmente, nos últimos meses, tornaram-se ainda mais visíveis as faces de um verdadeiro conflito global, com a intervenção direta de meios e tropas das maiores potências mundiais (Estados Unidos, Rússia, França) e regionais (Turquia, Iraque e Israel), por um lado, e uma série de guerras por procuração (Irão, Líbano, Arábia Saudita, Qatar), por outro. Curiosamente, quando se dá praticamente por derrotada a besta negra do Estado Islâmico.
Não falta sequer na equação o elemento curdo, a velha nação sem Estado. Um povo de heróis que o Ocidente acarinhou e usou quando percebeu que eram os combatentes mais fiáveis e os únicos com coragem para travar no terreno os homicidas islâmicos que cortavam cabeças em direto na Internet. Um povo de novo abandonado à sua sorte quando a Turquia, membro da NATO, mas com um regime político cada vez menos democrático e cada vez mais autocrático, decide que é tempo de esmagar as pretensões políticas curdas (paz, tolerância religiosa e... autonomia) e invade o Noroeste da Síria, semeando a destruição e a morte.
O Inferno na Terra. Uma descrição de Guterres que é também um grito de impotência. As crianças vão continuar a morrer na Síria. As curdas, do Norte. As alauitas, das cidades do litoral. As sunitas, dos enclaves urbanos rebeldes. Há por ali demasiada gente sem escrúpulos com o dedo no gatilho. Muitos em representação do nosso mundo ocidental, democrático e piedoso.
EDITOR-EXECUTIVO