Otelo Saraiva de Carvalho voltou a terreiro para declarar que "não foi para isto que fez o 25 de Abril", e para prenunciar que "pode vir a ocorrer uma eclosão social". Descontada essa previsão, que se admite que não lhe desagradasse (ainda que seja muito improvável que, a ocorrer, alguém se lembre de o chamar), a questão do seu arrependimento merece, contudo, reflexão.
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A primeira é que, finalmente, Otelo parece ter-se arrependido de alguma coisa, ainda que se possa questionar se esse seu arrependimento é sincero, ou apenas oportunista. Seria razoável se se arrependesse de muitos outros episódios em que esteve envolvido, o que justificaria a sua absolvição plena, anos depois de lhe terem perdoado por decreto. Teria sido preferível, por isso, que Otelo pedisse desculpa e se declarasse arrependido pelo que fez enquanto comandante do COPCON e pelo seu posterior envolvimento numa rede de terrorismo urbano que causou vítimas indefesas.
Não partilho a tese da ingenuidade que lhe é atribuída, e que serve para desculpabilizar os seus actos. Para mim, Otelo Saraiva de Carvalho representa o inimigo, não porque seja de esquerda ou de direita, ou porque tenha ou não tenha uma perspectiva histórica mais ou menos correcta, o que no caso é irrelevante. Como se pode ler no prólogo do "Relatório da Comissão de Averiguação de Violências Sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares" datado de 8 de Novembro de 1976 e da autoria de Ramalho Eanes, então presidente da República, "O inimigo é pois o inimigo do Homem e da sua dignidade. O Inimigo é todo aquele que avilta, que tortura, degrada, que ignominia e que difama. Não pode haver indulgência para as atrocidades revolucionárias sob o pretexto de que são inevitáveis. Tais atrocidades nascem na mesma fonte que justifica a Razão de Estado em todos os regimes autocráticos."
É possível que alguns dos seus "compagnons de route" e simpatizantes se ofendam com esta crónica mas, como escreveu Vasco graça Moura, a propósito desse relatório, espera-se que eles, "que hoje tanto se abnegam pelos direitos humanos, façam o obséquio de esclarecer como, quando e onde, condenaram publicamente o que se passou entre nós naquela altura."
Quanto ao seu arrependimento pelo seu envolvimento operacional no 25 de Abril, apenas se comprova que a liberdade em que hoje vivemos não foi construída, apenas nesse dia e nesse golpe de estado em que, para derrubar um regime envelhecido e autoritário, se formou uma improvável aliança entre interesses corporativos, vaidades pessoais de velhos generais, gente que estava a soldo de quem cobiçava as nossas colónias, e outros que queriam restaurar a democracia e a liberdade. Depois dos meses conturbados do PREC, foram estes últimos que venceram, e que assumiram o poder no 25 de Novembro. Certamente, não estarão arrependidos e, qualquer que seja a situação em que o país se encontre, merecem o nosso reconhecimento. Otelo esteve sempre do outro lado da barreira e foi um dos que tentou, em vão, evitar a democratização do país. Primeiro, quando participou nos acontecimentos que precederam o 25 de Novembro, e deixou o país à beira de uma guerra civil. Depois, quando se envolveu nas FP-25 de Abril, tendo sido julgado, condenado em tribunal e preso pelo seu papel na liderança desse grupo que foi responsável s pelo assassinato de 17 pessoas nos anos 80. Tendo sido indultado em 1996, e vivendo em plena liberdade, Otelo Saraiva de Carvalho não deixa, por isso, de ser o inimigo.