Nos anos de 1970, em Paços de Ferreira, um velhote jurava ser do tempo do aparecimento do JN. Perguntei-lhe como reagiram as pessoas ao primeiro número e ele respondeu sem hesitar: ficaram felizes.
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Teria uns sete anos quando nos contava estas coisas, sob a ramada, a jogar ao pião e a dizer palavrões sem culpa. Pareciam-me perfeitas as conversas, ainda que o meu pai me houvesse dito que o JN era de há tantos anos que o mais certo seria discutirmos mentiras. Entusiasmado, de qualquer modo, eu seguia perguntando. E qual foi a melhor notícia que leu? Ele demorou. Julguei que nem respondesse, como se apenas houvesse tragédia depois da felicidade inicial. Subitamente, declarou: mandaram a ditadura abaixo. Disse também com palavrões, que creio agora precisar de respeitar: mandaram a filha da puta da ditadura abaixo. E acrescentou: passámos a poder deitar a mão ao futuro. Apertava o pião igual a um bicho que estrangulasse.
A democracia era recente e eu, criança, não saberia ponderar sobre uma e outra coisa mas, por um instante, pensei que os jornais de verdade consumavam as grandes obras da História. Distribuíam por todos a informação como se formalizassem a passagem de uma ideia à outra, de um tempo ao outro. Sem os jornais, as pessoas podiam ficar numa cidadania do passado. Sem sequer crescerem.
Por toda a vida foi o jornal da família. Eram as notícias do meu pai, que haveria de morrer a refilar pelo estado do Mundo à procura, naquele formato ainda agigantado, de provas concretas da sanidade política. Haver o JN em nossa casa, todos os dias da vida do Senhor Jorge, era uma ideologia. Era uma fundamental correspondência, igual a receber uma carta de alguém que se lembrasse sempre de nós e nos quisesse avisar.
Se o velhote da minha infância ou o meu pai estivessem vivos, imagino que continuassem a ler este jornal, tão apertado como quem segura o futuro pela mão. Sei pouco sobre a vontade das pessoas. Estou invariavelmente equivocado com intenções de voto ou sequer preferências musicais ou culinárias. O que a maioria escolhe é-me comummente inexplicável. Sei, contudo, que ainda que eu houvesse de sobrar ao abandono não descuraria nunca a urgência de uma informação ética e de uma realidade democrática onde todos estejamos livres, que é o mesmo que dizer, sejamos quem somos sem medo, sem intimidação. Assim, a cada JN que chegue, a cada dia, espero que voltem as pessoas a sentir-se felizes, não por estar tudo feito, mas por não estar tudo irremediavelmente perdido.
*Escritor