O cãozinho trazia na massa do sangue as convergências do pecado de uma perdigueira com um rafeiro de guarda: sempre pronto a obsequiar o dono, ora latindo ameaças, ora abocanhando presas. No género humano, encontra-se equivalente na estirpe jagunça.
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Feliz da vida, com a cauda a dar e dar, trouxe nos dentes uma nutrida galinha pedrês filada na capoeira do vizinho, contra a qual ouvira o dono resmuninhar promessas de um dia a converter em cabidela - e depositou-lha aos pés.
Para sua tremenda surpresa, o cãozinho viu o dono ficar lívido, açoitá-lo ruidosamente com um jornal, escorraçá-lo de fúria - e aproximar-se da casa do vizinho com desculpas nos lábios e umas notas nos dedos.
O cãozinho, estupefacto, iria jurar que pressentira no dono a vontade de meter o dente na galinha e até já imaginava o molho a escorrer-lhe pelos cantos dos beiços.
Percebem onde quero chegar? Isso. Estou a falar de política. Do coiso. Daquilo.
O mínimo que aconteceu é que uns cachorritos jagunços quiseram presentear o dono e amo com uma malfeitoria que lhe saberia bem. Mas a coisa correu mal.
O dono não pode dizer que não mandou nem sabia. As suas criaturas - porque são suas criaturas - fizeram o desmando. Pode o dono dar-lhes com o jornal no lombo ou até pontapeá-los selvaticamente. Mas tem de responder pelo que fizeram.
Não há que chamar o CSI Miami para investigar o local do crime. É ocioso convocar as becas e as togas, meirinhos e escrivães para judiciar um crime por provar em terra onde custa a provar crimes comprovados.
Há um outro julgamento: o popular. Não, não é o da turba em fúria em roda do pelourinho. É o julgamento do povo - todo o povo - através dos seus representantes a quem, nesta situação, pertence formular a sua convicção profunda sobre o que aconteceu, sem necessitar de provas exigíveis no foro criminal - e afastar quem não mereça ficar.
É o julgamento político - o único julgamento popular legítimo.
Assim devia ser - não se desse o caso de os julgadores estarem em pânico com o que daí pode vir e preferirem o lume brando de comissões atrás de comissões, enquanto fazem o papel de ferrabrases de feira, ameaçando às arrecuas: «Agarrem-me se não eu mato-o! Agarrem-me se não eu mato-o!»
Mas, como digo, ainda o melhor é o dono das criaturas assumir com nobreza a responsabilidade objectiva pelo desmando já inútil de ser negado junto da convicção pública - e tomar a única atitude que se lhe reclama.