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Os "Documentos do Panamá" puseram mais uma vez a descoberto a trafulhice generalizada associada a estes tempos de capitalismo financeiro, em que o objetivo deixou de ser a produção de riqueza, para passar a ser a reprodução de capital. E deram palco à indignação geral, o que é compreensível e até desejável. O problema é que a indignação dura sempre pouco tempo e, sobretudo, não tem tido efeitos práticos. Senão vejamos:
- Ficámos todos a saber o que já sabiam as elites financeiras, políticas e criminosas (qualidades que muitas vezes se cruzam num mesmo indivíduo), ou seja, que países como o Panamá ou as Ilhas Virgens são santuários para grandes fortunas. Acontece que, segundo o ranking da "Tax Justice Network", uma espécie de organização não governamental que, como o nome indica, promove a justiça fiscal a nível global, os três melhores paraísos fiscais não estão situados em locais exóticos. São, antes, a Suíça, Hong Kong e os Estados Unidos.
- Em novembro de 2014, viveu-se indignação semelhante à de hoje, a propósito do "Luxleaks", que, entre outras malfeitorias, destapou os acordos entre o Governo do Luxemburgo e 340 multinacionais (como a Ikea, a Pepsi ou a Amazon), para que estas parqueassem os seus negócios no grão-ducado, beneficiando de vantagens fiscais que permitem taxas de imposto inferiores a 1%. A consequência mais evidente deste caso é que o primeiro-ministro do Governo do Luxemburgo que negociou este "dumping" fiscal, Jean-Claude Juncker, foi entretanto promovido a presidente da Comissão Europeia.
- Em fevereiro de 2015, nova maré de indignação, com o "Swissleaks", através do qual se percebeu que a filial suíça do banco britânico HSBC montou um esquema para esconder fortunas e permitir a evasão fiscal a milionários de todo o Mundo: 30 mil contas com cerca de 105 mil milhões de euros. As consequências mais evidentes deste caso foram, por um lado, que o HSBC foi condenado, por um tribunal suíço, ao pagamento de uma multa de 35 milhões de euros por "deficiências organizativas"; e, por outro, que Hervé Falciani, garganta funda que divulgou os documentos, foi condenado a cinco anos de cadeia.
A conclusão que se retira é a de que o ideal da liberdade de circulação de pessoas, bens e capital que serve de suporte ao capitalismo democrático já não passa de uma fachada: a liberdade de circulação existe apenas para as elites financeiras, políticas e criminosas e para o seu capital. E que a hipocrisia anda de mãos dadas com os líderes políticos, nomeadamente nesta Europa de que fazemos parte. Também eles ficam indignados e anunciam mudanças, mas apenas para aplacar a fúria inicial dos cidadãos. Um comportamento que nos remete para o princípio enunciado pelo príncipe de Falconeri, no romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, "O leopardo": para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.
EDITOR-EXECUTIVO