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O Piolho, um dos mais lendários cafés do Porto, anunciou nas redes sociais a morte inesperada de um dos seus empregados de mesa, o Luís. Gerou-se uma onda de comoção, nos comentários, entre as pessoas da cidade, no meu grupo de amigos, entre muitos desconhecidos que o tinham em comum. Porque além de jovem, o Luís era uma figura muito querida do quotidiano coletivo, era aquela pessoa simpática e de coração bom. É difícil imaginar o Piolho sem ele, porque ele parecia fazer parte daquele lugar (e, portanto, da cidade) desde sempre, com o seu sorriso familiar de quem espera os amigos para jantar, com a mesa posta.
Eu diria que se tivéssemos de identificar as figuras que mais representam o seu espírito particular desta cidade, não poderia faltar na lista o Empregado-de-mesa-do-Porto. E esse arquétipo era muito bem representado pelo Luís. O equilíbrio entre simpatia e alguma resmunguice irónica, sinal de que nos tratam como se estivéssemos em casa, o sentido de humor afiado, a eficiência à prova de multidão, o talento para a conversa de circunstância sem qualquer inconveniência e, claro, a memória de elefante.
Memória para lembrar os pedidos de cada mesa, mas, sobretudo, de cada um (antecipando o que já é habitual pedir-se). Memória para recordar o nome, o clube de eleição, a profissão, a doença da esposa, o nome do neto, em suma, os detalhes que compõem a singularidade de cada pessoa. Memória de cidade, para reconhecer quem passa todos os dias, de onde vêm e onde trabalham, mas também para receber os visitantes à nossa maneira, à nossa mesa, com a nossa resmunguice simpática.
Ora, numa cidade cada vez menos familiar, em que cada vez menos reconhecemos e somos reconhecidos, em que cada vez menos encontramos os nossos lugares, perder o Luís custa ainda mais. Pode soar egoísta, falar de alguém como sendo património de um lugar, porque as pessoas são sempre mais do seu círculo íntimo, mas se o Piolho representa um dos últimos redutos de um Porto reconhecível, o Luís era um dos seus rostos mais familiares e custa muito pensar que, com ele, se perde um anfitrião dessa cidade em desaparecimento. Perde-se a sua memória acumulada e mais um elo muito importante na malha que compõe o tecido social urbano.
O Porto sempre fez vida nos cafés, de dia (para tomar o café antes do trabalho, folheando o JN que passa de mesa em mesa, para almoçar um prato do dia com os colegas ou para passar a tarde a estudar) e de noite (para comer uma francesinha, ver o jogo e beber com amigos). A destreza de um empregado de mesa de um grande café portuense devia ser ensinada nas escolas de hotelaria, mas o seu humor castiço e familiar é impossível de emular e está em desaparecimento. À falta de estátua para o Empregado-de-mesa-do-Porto, faça-se pelo menos uma placa ao Luís nas paredes do Piolho!