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Enviei aos interessados uma fotografia do meu quadro de escrita, perguntando: não é uma coisa bela? Devia ter perguntado: não é uma coisa louca? As duas perguntas fariam sentido, porque o quadro é belo e louco.
Se a escrita de um romance correr bem, chega-se a um momento de não retorno de uma beleza louca que eu considero tocante. Não tem que ver comigo, tem que ver com a coisa em si - outros escritores sentem decerto o mesmo. Digo tocante porque é uma espécie de recompensa: até ao ponto de não retorno, os escritores duvidam sempre. A partir desse momento, pelo menos desaparece uma dúvida - passamos a saber que o livro é mesmo para acabar.
Mas também considero tocante por outro motivo. Porque toca em regiões químicas do meu cérebro, desarranjando-o. Só o desarranjo explica o que se segue.
Primeiro, escrevi no Word, como um guião, a sequência narrativa do meu novo romance, do ponto em que está até ao final. Depois, destaquei as frases com quatro cores diferentes, correspondentes às quatro linhas temporais da história. Agora, a explanação do enredo brilhava a cores.
De seguida, quando pertinente, acrescentei a indicação [x] às frases, para assinalar que a sequência descrita tem a coesão de um capítulo. E parti tudo em parágrafos a começar em [x].
Depois é que foi bonito: imprimi e recortei as sequências dos capítulos em tiras de papel, organizando-as cronologicamente em montes distintos. Com pioneses, afixei as tiras distribuindo-as pelas quatro colunas óbvias das quatro narrativas paralelas.
E então ouvi a música, a sinfonia - a harmonia do romance.
Munido de post-its numerados para indicar os capítulos seguintes, colei-os às tiras de papel de acordo com o equilíbrio da história, o balanço entre as linhas narrativas e as personagens e as tensões entre tudo isto. A música não tem de ser bela, mas tem de ser música. E eu preciso de ouvi-la.
De seguida, espetei um pionés em cada post-it, usando-os para estender um cordel do primeiro ao último capítulo. Estava enlaçada a história como numa investigação forense em busca do criminoso. Mas o criminoso conheço-o desde a primeira frase - sou eu - e sei que tudo fará para sair disto impune.
Por fim, reorganizei o Word original com a sequência definitiva dos capítulos que resultou do trabalho no quadro. E senti que me dava segurança e alegria para acabar o romance.
Mas o quadro forense parecia-me tão belo, que não resisti a mandar uma fotografia aos interessados. Responderam-me: qual belo, qual quê - é completamente incompreensível. E eu concordei: afinal, só os loucos sabem ler o mapa que usaram para se perder.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia