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A propósito do processo "Face Oculta", uma procissão que parece não ter ainda saído do adro, tivemos já vozes a clamar pela tábua rasa. Mas não parece boa ideia travar a fundo, face a uma curva perigosa. Não é curial "repensar" a política de investigação criminal, quando ainda não se acabou de aplicar o último pensamento. É isto, porém, que alguns sugerem.
Vamos, então, por partes. Esmiucemos a proposta.
Na impossibilidade de uma justiça ideal, que resguarde perfeitamente todos os interesses, é sempre útil seguir o velho ditado popular: não deitemos fora o bebé com a água do banho.
Certamente que será preciso reformar, por ciclos ou de vez, o sistema de administração da justiça. Este precisa de se alterar, quando mudarem as convicções dominantes, ou carece de mudança, quando se provar que muitas das suas peças práticas não funcionam, por má adequação da lei à prática, ou má redacção, ou malformação da norma básica.
Por outras palavras, ainda: as reformas judiciais justificam-se ou pela mudança da teoria, ou pelas lições da prática.
Ora, para a "teoria actual", que une várias gerações, é desejável o princípio da divisão de poderes do estado. É ele que impede o tribunal de legislar, e o legislador de julgar, e o poder moderador de governar, e o governo de dissolver o parlamento. E parece benéfica, na área da justiça, uma igual divisão de poderes, que assegure freios e contrapesos, instâncias de recurso, e intervenção, em todas as fases, de actores diferentes.
No actual sistema de investigação, coexistem, com poderes bem determinados, a polícia criminal por excelência (a PJ), o Ministério Público, e a magistratura, através do juiz de instrução. Este valida ou invalida todos os actos processuais, não sendo nunca um estranho, e aparecendo como elemento fundamental. Não dirige o processo, no sentido de tomar iniciativas, mas é a sua palavra que o determina, em última instância.
Quanto à Judiciária, não age, como alguns sugerem, em "roda livre", mas como mero braço técnico-policial de investigação dos acusadores públicos, também eles magistrados de carreira, e não funcionários político-partidários.
O afastamento da PJ do processo seria absurdo, pois retiraria à justiça os meios materiais de investigação, castrando-a.
O afastamento do MP tornaria a magistratura judicial em investigadora e julgadora, ordenadora, vistoriadora e confirmadora da escutas, e ao mesmo tempo autora de despachos fundamentados, de legalização das mesmas. Ou seja: daria ao juiz de instrução um poder absoluto, que de certeza iria provocar um novo coro de queixas. Quanto ao afastamento dos juízes, conferiria ao Ministério Público um poder próximo das Prokuraturas dos regimes comunistas.
Deixemos assim o actual sistema em paz.
O problema não está na sua arquitectura. Mas já pode estar na malfadada norma do art.11,2b), do Código de Processo Penal, introduzida em 2007, conferindo aos mais altos cargos do estado uma protecção desigual (não devendo haver hierarquia em juízo), desnecessária (porque já assegurada, em todo o Capítulo IV do Código) e causadora de alarme social, nos processos de escutas.
Ainda por cima porque o escutado não é aqui o PM, mas um arguido que fala com uma pessoa que, por acaso, é o PM.
É diferente.
E obrigar o Supremo a decidir sozinho, da manutenção ou destruição de comunicações interceptadas, ao mais alto nível, provoca, no largo público, um impacte dramático que agrava o martírio da justiça.
O legislador de 2007 poderia não querer este resultado.
Ei-lo, porém.