A meio da manhã de ontem, numa estação televisiva, Paulo Núncio, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, falava dos 1,2 mil milhões de euros arrecadados pelo Estado via perdão fiscal. É um bom número, dadas as previsões iniciais (700 milhões). Embalado pela estatística, o governante foi ao bolso das frases feitas e atirou: "Estamos numa nova fase de esperança".
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Esta "nova fase de esperança" é um sucedâneo do "há que reconhecer o extraordinário esforço desenvolvido pelos nossos empresários e trabalhadores para vencerem [os] obstáculos" que a crise lhes tem colocado pela frente, em doses cavalares, nos últimos anos. O primeiro-ministro, os ministros e o presidente da República usam e abusam desta espécie de bálsamo que pretende apenas anestesiar os neurónios de quem sofre, para que a dor amenize, ainda que por meros segundos. O chefe de Estado fê-lo, por exemplo, na sua angustiante mensagem de Ano Novo.
Os portugueses que trazem gravada na pele a rudeza dos dias sabem bem que o chavão não vale um vintém. Basta pegar na última medida de sufoco decidida pelo Governo para perceber quanta demagogia escorre desta proclamação de admiração pelo incansável esforço do povo lusitano.
Para contornar o chumbo dos juízes do Tribunal Constitucional ao programa de convergência das pensões, o Executivo alargou a base de incidência da contribuição extraordinária de solidariedade. Vendendo a coisa como um corte na despesa, o que o Governo fez foi aumentar a receita criando um novo imposto para as pessoas que, sortudas!, até agora tinham escapado à ceifa.
A esta gente que, aos olhos de Passos Coelho e de Cavaco Silva, sofre mas não deixa cair o sorriso porque vislumbra, lá longe, um futuro digno, juntou-se outra gente, igualmente sovada uma e outra vez, mas nem por isso descrente na capacidade dos decisores: é gente que vai descontar ainda mais para a ADSE. É a isto que o ministro da Economia deve chamar o "milagre económico": uma estranha combinação histórica entre sadismo fiscal e masoquismo patriótico.
Sim, é ao nosso espírito patriótico (seja lá o que isso for) que o Governo apela cada vez com mais insistência. A tese é esta: depois da saída da troika, em maio deste ano, não passaremos do inferno para o céu, mas há, lá está, "uma nova fase de esperança". Há? Mas que esperança é essa? Chama-se programa cautelar? E o que é isso? Que vantagens e desvantagens tem? Obriga-nos a quê? Liberta-nos de quê? Esta discussão o Governo não promove, não quer promover. Porque, além de ser incómoda, pode chatear os mercados e a Sra. Merkel. Acresce que, assim como assim, o povo sempre fará, se for preciso, mais um "extraordinário esforço" para pagar do seu bolso os erros do Governo.
Fraca sina!