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Na semana passada esteve cá em casa um grande amigo brasileiro. É, acima de tudo, um homem íntegro e bom mas é também um superior especialista em redes elétricas e um conhecedor profundo da sociedade brasileira, sociologia, prosa e poesia incluídas.
Não escapou à nossa ávida pergunta familiar: e então o Brasil?
Começou a explicar lentamente: "Olha, eu não votei Lula não, da primeira vez..."! E naquela voz cantada e doce foi explicando que, ao princípio, não acreditou que nada de bom viesse do sindicalista demagogo e pouco instruído que há tantos anos vociferava contra todas as elites.
"Mas aí, o Lula presidente trouxe algumas coisas que tocaram fundo naqueles, muitos, brasileiros que sempre foram sendo esquecidos...". E o meu amigo explicava que, por exemplo, só nos mandatos Lula passou a haver uma certidão de nascimento para todos os brasileiros. "Somos nove irmãos. Minha mãe sempre usava a minha, a única que tinha. Contava para a professora de meus irmãos que tinha nove filhos, tinha trocado o papel e aí ficava assim mesmo...".
Só nos mandatos de Lula passou a haver um número de porta obrigatório. Nas favelas e nos bairros desfavorecidos ninguém tinha número de porta.
E continuou na mesma toada, cantada e doce. Muitos tiveram luz pela primeira vez, tiveram água pela primeira vez, puderam comer carne uma vez por semana, puderam ir ao dentista e sorrir, puderam arriscar mandar o filho para a escola em vez de o forçar a trabalhar.
"E reparem, meus amigos, nada disto tem ainda a ver com a criação da tal classe média, dos estratos A, B, C e D, que no Brasil vão até ao N, M, P, Q... Z, eu sei lá..." - pontuava.
Claro! Isto tem a ver com uma coisa muito mais importante. Tem a ver com a garantia de uma cidadania básica que simplesmente faz com que deixemos de ser invisíveis. Teremos noção do que significa?
E este é o verdadeiro legado de Lula da Silva. Aquele que é irrefutável nos fundamentos e indestrutível nas consequências.
E, por isso, não é passível de ser avaliado à luz de outras políticas ou de outros pequenos, grandes e enormes erros.
E foi por isso também que a minha intervenção na discussão, apelando à insensatez da política monetária, ao isolamento endémico da indústria, à informalidade e opacidade dos serviços ou mesmo à notória decrepitude das infraestruturas, mereceu do meu amigo um sorriso, para agradecer o almoço com um verso terno de Vinicius.