"As vinhas suspendem-se da orla da vila e estendem-se pelo vale com intensidades distintas de verde e ouro, roçando os povoados vizinhos."in "O menino de ouro do PS" (pág. 17).
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É insólito. Em Portugal, os líderes gostam de se ver retratados pelos biógrafos da corte como rurais. Salazar insistia em ser filmado nas férias de Verão a dar de comer às galinhas num quintalzinho da casa que querem agora transformar no museu da infâmia. Se o museu acabar por ir para a frente, a bem da autenticidade, terão de reconstruir um galinheiro que inclua as três ou quatro aves de pescoço pelado que ainda hoje podem ser vistas nos documentários da RTP. Elas eram uma parte integrante da personalidade do homem. Mais recentemente, Aníbal Cavaco Silva mandava vir a RTP no Verão à vivenda Mariani, em Boliqueime, para ser filmado de calções no jardim, numa poda obstinada a uma palmeirinha.
Em São Tomé, Cavaco Silva viria a complementar esta imagem de controlo firme da flora tropical trepando por um coqueiro. Na fotografia, parecia que o primeiro-ministro desafiava a gravidade à força da musculatura fibrosa, numa escalada vertical por um tronco liso, rumo às alturas onde a promessa de um coco fresco premiaria o esforço do trabalho destemido. Na realidade, o coqueiro de São Tomé (ainda lá está) é um daqueles seres vegetais torturados, vergados por tempestades tropicais que cresce na horizontal e consegue recuperar uns metros de verticalidade oblíqua no fim, junto a uma copa que não é maior do que a da palmeira de Mariani. Mas há coisas que não mudam.
Recuando a Salazar, é fácil imaginar que sempre que o viam em Santa Comba Dão os locais se recolhessem em silêncios respeitosos, apenas rompidos por tímidos acenos ou saudações veneradoras ao homem de imenso poder que não enjeitava as suas origens e cuidava das suas próprias galinhas. Como atesta a subdirectora de Informação da RDP, Eduarda Maio, em "O menino de ouro do PS", é exactamente assim que se comportam hoje os naturais de Vila de Maçada sempre que vislumbram a figura do chefe do Governo a calcorrear o fragal de Trás-os-Montes que tinha sido domínio do pequeno Zezito: " (...) De vez em quando o povo vê-o a passar por lá, mas só quem o conhece bem se atreve a acenar-lhe ou a cumprimentá-lo. Os outros inibem-se, acanham-se. A intimidade da terra com o pequeno Zezito é tão forte quanto a distância e estranheza da vila em relação ao homem que chefia o governo do país. Como se Zezito e José Sócrates habitassem dimensões diferentes." (Pág.79).
Mas há alterações substantivas na maneira como os nossos dirigentes se vêem a si próprios. Se Salazar se via como avicultor e Cavaco como jardineiro, queriam de qualquer modo projectar os seus alter egos como homens adultos, nunca deixando que minorassem a sua estatura a dimensões de infantilidade. Salazar mandaria para o Tarrafal o cronista que se atrevesse a dar como título à sua biografia consentida: António, o miúdo das galinhas. Cavaco Silva teria feito a vida negra a quem intitulasse o seu memorial no governo: Aníbal, o jovem trepador de coqueiros. Agora não se importam! Eduarda Maio larga à estampa "Sócrates o menino de ouro do PS" e não lhe acontece nada! Ou tem pais ricos, ou os tempos mudaram, ou enlouquecemos de vez. Todos.