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A minutos tantos da entrevista que há dias fiz, a meias com o meu colega Pedro Ivo Carvalho, a Jean-Claude Juncker, a pergunta cortou o alinhamento que preparáramos com minúcia, dado o pouco tempo que tínhamos para questionar o conservador luxemburguês que almeja suceder a Durão Barroso na liderança da Comissão Europeia: "Desculpará, mas, na passada semana, Martin Schulz esteve nesse mesmo lugar. Parece que estou a ouvi-lo novamente, uma vez que as suas propostas para o futuro da União Europeia (UE) são iguais às do candidato da Esquerda". À cara de Juncker colou-se uma expressão de nítida irritação, comprovada pela resposta provocatória: "Isso quer dizer que os senhores não ouviram o que estive a dizer nos últimos dez minutos". Problema: tínhamos ouvido. E com bastante atenção.
Este empastelamento do discurso sobre o futuro do mais extraordinário projeto político que a Europa foi capaz de erguer sobre as cinzas que cobriram um continente fustigado por duas guerras estúpidas é, claro, tributário das tremendas dificuldades que corroem o coração da UE - são tantas e tão graves que os alicerces dessa magnífica ideia de criar um espaço comum de liberdade e solidariedade estão hoje em séria crise. Ora, perante engulhos de tamanho tão ciclópico não há quem se atreva a desviar o discurso do óbvio, do politicamente correto. Não há atores, individuais e coletivos, com coragem e responsabilidade histórica suficientes para regressar aos valores sem avaliar os temores.
É pelas crescentes frinchas deste edifício enegrecido pelo hiato entre quem ocupa e quem escolhe os ocupantes desse edifício que renasce a velha máxima: "O meu país, certo ou errado". Vale o mesmo dizer: o fechamento dos povos, que inelutavelmente atrai o fechamento dos governos e a defesa do interesse próprio, deixa para segundas núpcias o interesse comum.
O perigo deste caminho está aqui: há já muito boa gente a ver coisa boa no crescimento dos partidos dos extremos. A lógica é: pode ser que, assim, o centro se assuste e finalmente perceba que os discursos de circunstância e as políticas sem substância não compensam; pode ser que assim percebam que o projeto europeu pode mesmo ir ao charco, sem que ninguém consiga antever a extensão dos danos. Percebo o argumento. Sucede que a democracia não é coisa comparável ao jogo da lerpa: neste, se o bluff correr mal, o pior que pode acontecer é ficarmos sem dinheiro; na democracia, o pior que pode acontecer é mesmo ficarmos sem ela.
Com o crescimento da extrema-direita e da extrema-esquerda regressará a tese da defesa do meu país, seja ela certa ou errada. Essa espécie de moral da convicção torcida até ao limite elimina, num ápice, a responsabilidade que nos cabe a todos de deixar a quem vem um Mundo um bocadinho melhor do que aquele que nos foi entregue. Eu não quero isso.