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É preciso muita coragem para denunciar um assédio ou um abuso sexual. O grau de exposição que isso implica já é muito desencorajador, mas a catadupa de desconfiança, questionamentos e sobrolhos franzidos que costuma seguir-se não é menos intimidante. Já para não falar da dificuldade em apresentar provas contundentes, num palavra-contra-palavra em que homem e mulher raramente estão em pé de igualdade, e da inevitável acusação de difamação (na tentativa de calar a vítima, antes mesmo de esta chegar a levar o acusado a tribunal). De facto, o dedo está quase sempre apontado para o lado errado, o que reforça esta cultura de medo e impunidade.
Por outro lado, quando uma mulher tem a coragem de abrir a caixa de Pandora, como aconteceu com Liliana Cunha neste Me Too do Jazz Português, é frequente que muitas outras se sintam capazes de juntar-se. E parecendo uma coisa simples, acaba por ser uma revolução. O poder da união, da sororidade e da justiça é a pedrada no charco que falta, para que a água choca em que vivemos tempo demais, se agite e renove de uma vez por todas.
É preciso remexer nas velhas cumplicidades, acabar com os silêncios e com o ambiente viciado em que só os abusadores se sentem confortáveis. No caldo cultural em que crescemos, aprendemos que há coisas que nunca mudam, que mais vale ignorar, que os homens são mesmo assim, que talvez seja coisa da nossa cabeça, que quem se queixa muito ganha fama de ser quezilento e perde oportunidades.
Se pusermos um sapo em água quente ele salta, mas se o pusermos numa panela de água fria e formos aquecendo lentamente, ele morre cozido sem dar por nada. Foi nessa água quente que estivemos todo este tempo e que uma mulher que tenha a coragem de dizer basta é quase um milagre!
Claro que, para que as coisas não voltem aos antigos lugares depois do sismo, é preciso que esta nova consciência se torne diapasão. E não é só no jazz, onde o ambiente letivo torna tudo mais complexo, pelas relações de poder entre professores (músicos reconhecidos) e alunas (habitualmente muito jovens, numa cultura que trata as mulheres como acessórias e decorativas), é em todas as esferas da nossa vida.
Sendo que, para que isso aconteça, é preciso refundar não apenas os meios em que nos movemos, mas a nossa Cultura. Porque enquanto vivermos numa sociedade em que as mulheres são permanentemente subalternizadas, desconsideradas e vistas como acessórias e, por outro lado, se valoriza de forma desproporcional o talento masculino, e os homens em situação de poder e prestígio, dando-lhes a ilusão da sua total omnipotência e impunidade, vamos continuar a criar predadores de egos gigantes e a reproduzir gerações e gerações de mulheres vitimizadas e sabotadas.