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"Já viveste muitos anos, podes trabalhar só com a memória". Gosto desta frase, mas também me assusta, parece que cada vez estou mais perto dela, já passei muita estação e apeadeiro. Alguém a diz no romance A Escavação, de Andrei Platonov, um excelente "escritor soviético" que, como era normal, seria perseguido, destruído profissionalmente pelo regime soviético, morrendo tuberculoso e na miséria. Platonov é também autor do conto O Mundo Belo e Feroz, a história de um maquinista de comboios que chegava sempre a horas e estimava o material da locomotiva, sabendo exactamente como avançar por subidas, curvas e descidas. Até ao dia em que enfrenta uma tempestade com relâmpagos, pó, chuva e, finalmente, um raio e explosão eléctrica que o cegou. Mas ele continuou a conduzir velozmente a máquina quase até ao desastre, o maquinista continuava a ver a linha do comboio na sua imaginação, tal era o conhecimento dos carris. O maquinista cegara com a onda electromagnética imediatamente antes do raio, só que seria condenado em tribunal, ninguém acreditou nisto ou, se acreditaram, não quiseram saber.
Esta semana, a 11 de Setembro, data mundial do atentado das Torres Gémeas, passaram 40 anos da grande tragédia portuguesa de Alcafache. Por erro humano, um comboio internacional de ligação à Europa e um regional chocaram de frente no distrito de Viseu, matando cerca de 200 pessoas, grande parte emigrantes de regresso a França. Nunca se saberá ao certo quantos porque de muitos corpos não sobraram nem as cinzas. Lembro-me dessa noite de calor, estava uma multidão no Rossio de Portalegre quando começaram a chegar em farrapos as notícias do horror.
O jornalista Carlos Cipriano, no Público, recuperou este relatório da CP: "Dada a clareza exigida para os telefonemas regulamentares resultou logo, de forma bem evidente, que na mesma comunicação telefónica havida entre os dois chefes de estação, essa clareza não se terá verificado, e assim a estação de Alcafache teria tomado indevidamente como concessão de avanço ao comboio 1324 apenas o número de referência de mensagem e a hora que Nelas estaria a referir por seu lado como se fosse o pedido de avanço para o comboio 315 aquilo que Alcafache teria referido, como se fosse o pedido de avanço para o comboio 1324."
É incrível como se pode falar de clareza desta forma abstrusa, é uma das nossas estranhas qualidades, um dia saberemos, ou não saberemos, como é que a ligação de segurança de um cabo no elevador da Glória não é vistoriada como parte do cabo, e como é que um senhor Moedas que exigia responsabilidade política aos outros, foge depois de um acidente horrível gritando que não foge. A empresa comboios de Portugal, em 1985, puniu com baixa de categoria ou despedimento quatro dos responsáveis ferroviários. O tribunal de Mangualde, no entanto, viria a absolvê-los, parece que o erro humano seria inevitável no fraco sistema de controlo telefónico que existia, e depois o processo desapareceu do tribunal, o que ainda deu mais jeito.
A memória traz-me outra coisa pessoal. Dias depois de Alcafache, viemos a saber que um dos meus colegas de turma teria morrido no desastre. Seria um dos desaparecidos e a minha tristeza foi ainda maior. Durante anos, pensei nele sempre que entrava no comboio. Até que um dia o vi, em directo, num programa dominical de Júlio Isidro, a cair, levantar-se, rodopiar no chão, era concorrente num concurso de break dance e, fora prova em contrário, continuava vivo neste mundo belo e feroz.
* O autor escreve segundo a antiga ortografia