O mundo precisa de saber que as mulheres ucranianas dão à luz sob bombardeamentos
Um destes dias, à hora de preparar o jantar, uma gata, que acolhemos quando foi abandonada já grávida, entrou em trabalho de parto. Miava, desesperadamente, deixando perceber que o parto estaria iminente. Acabámos por a deitar na cama da nossa cadela - a Heidi, junto de nós, na cozinha.
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Enquanto preparávamos o jantar, nasceu o primeiro gatinho, em tons de branco e preto, pequenino e indefeso. A Heidi, que vigiava de perto o que ia acontecendo, deitou-se junto da gata. O trabalho de parto continuou com a gata a fincar as patas no corpo da Heidi, tentando expelir o segundo gatinho, bege e franzino. A Heidi continuou deitada junto dela, vigilante.
Entretanto, continuando a fazer força com as patas na barriga da cadela, a gata deu à luz o terceiro gatinho, branco e preto, mais malhado e já com dificuldades em respirar. Lambeu-o até ele recuperar o fôlego. Enquanto a gata lambia a cria, a Heidi desceu da cama, sentou-se no chão, e fitou-a com o olhar, como se lhe dissesse: fica à vontade, já não precisas de mim aí, mas estou aqui, perto de ti, para o que precisares.
A Heidi não se afastou da gata nem dos gatinhos mais do que meia dúzia de minutos e nós ficámos deslumbrados com o milagre da vida animal e a surpresa do amor entre uma cadela e uma gata que se conhecem há menos de dois meses. Na manhã seguinte, fomos surpreendidos com a notícia de 140 bebés nascidos num só bunker de uma maternidade, na Ucrânia, durante bombardeamentos russos. Foi um enorme murro no estômago.
Desde o início da guerra na Ucrânia, já lá vão 407 dias, há inúmeros relatos de nascimentos de bebés em abrigos antiaéreos de hospitais bombardeados na Ucrânia. Ou em caves insalubres das casas. Ou em bunkers de edifícios públicos. Ou nas estações de metro. Ou em qualquer lugar que aparente ser um refúgio seguro perante os ataques dos mísseis russos. Ainda que, nos campos de batalha, as vítimas mortais sejam maioritariamente homens, as mulheres ucranianas contam-se entre as vítimas mais frequentes desta guerra.
Mariupol, Zhytomyr, Kharkiv, Vasylivka, Chernihiv, Kherson... são algumas das cidades cujos principais hospitais (pediátricos e maternidades) já foram bombardeados, mas a própria capital - Kyiv - tem edifícios hospitalares parcialmente destruídos pelos bombardeamentos inimigos. 407 dias depois, a guerra continua, os ataques com mísseis e bombas prosseguem e as mulheres continuam a dar à luz em espaços sem quaisquer condições sanitárias. Os bebés vêm ao mundo em lugares quase sem luz, sem água, sem aquecimento, sem higiene...
O mundo precisa de saber que as mulheres ucranianas dão à luz sob bombardeamentos, repete Anna Hopko, antiga deputada do Parlamento da Ucrânia, sempre que tem oportunidade de falar com alguém que pode passar a mensagem. Anna reclama a definição de uma zona de interdição de voos sobre a Ucrânia, onde possam ser criadas as condições básicas para nascimentos seguros. Está em causa a vida das mães e dos bebés e, se a esta situação juntarmos a deportação de crianças ucranianas, percebemos que está também em risco o futuro da Ucrânia. Sem crianças não há futuro.
Como se estas situações intoleráveis, confirmadas por diversas organizações humanitárias internacionais, não bastassem, hoje ficámos a saber que a Rússia aproveitou o palco da presidência do Conselho de Segurança da ONU (só por si uma ironia) para desmentir a deportação forçada de crianças e para acusar Portugal de retirar as crianças às mães ucranianas refugiadas no nosso país. A acusação foi imediatamente negada, mas é impossível não ficarmos a pensar até onde pode ir um país na sua estratégia de propaganda de guerra.
Sabemos que a propaganda não conhece limites, mas esta acusação é um ultraje que não deveria cair em saco roto. Assim como o pedido de Anna Hopko também não deveria passar em vão. Assim como os gritos das mulheres que dão à luz em bunkers, abrigos, caves, estações de metro, escombros... também não deveriam ser ignorados. É uma desumanidade que não podemos continuar a aceitar. É impossível ficarmos apenas deslumbrados pelo milagre da vida animal e seguirmos a nossa vida, indiferentes à situação das mulheres ucranianas, dos bebés que nascem na guerra, das crianças que são levadas para lugares a que não as ligam quaisquer afetos. A UNICEF diz que, na Ucrânia, as mães iluminam a escuridão com a luz da nova vida. É uma bela metáfora, mas é só isso. O mundo tem de se indignar!
* Historiadora (HTC - CFE - Nova FCSH)
