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Já foram decretados cúmplices, irmãos gémeos, até uma espécie de entidade única. Da reforma do Estado ao equilíbrio financeiro, da eliminação de burocracias redundantes à requalificação de recursos humanos, tudo, no socratismo, parecia uma retoma do cavaquismo governante.
Há diferenças estruturais, porém. Simplificando, o PSD do fim dos anos oitenta foi um produto de Cavaco, enquanto que Sócrates é o fruto acabado do PS pós-moderno.
Realmente, Cavaco moldou o partido do seu tempo. Daí que a sua saída abrupta tenha deixado uma orfandade mal resolvida. Pode até dizer-se que, na antiga "laranja mecânica", existe hoje um jardim infantil em autogestão.
Falando mais a sério (isto é, de "políticas"), Cavaco reinterpretou o pensamento de Sá Carneiro, minimizando a bagagem libertária e acentuando a tecnocracia, adaptando a doutrina social-democrata às condições de subdesenvolvimento nacional, recusando os rótulos clássicos e fazendo vários armistícios com a história recente. Quanto a Sócrates, reviu e melhorou o guterrismo, que já era uma espécie de versão "de rosto humano" do cavaquismo tardio, em que as reformas se fariam, mas "com diálogo".
Foi aqui que tudo mudou. A principal responsável, dir-se-á, foi a maioria absoluta. Onde Guterres teve sempre de negociar, Sócrates não precisava de duas opiniões, para além do aviso do seu círculo restrito. Mas necessitava de uma coisa: a paz presidencial.
Cavaco terá percebido o dilema. Viveu o mesmo.
Uma maioria absoluta facilita a governação, se em Belém não viverem "forças de bloqueio". Ora no primeiro mandato, o socratismo pode queixar-se de tudo, menos de empecilhos do chefe de Estado. Toda a sua política essencial foi promulgada, excepto nos casos onde o Governo forçou a mão, mesmo sabendo a prévia opinião presidencial. Mas dizem os íntimos que Belém se preocupou com a falta de alternativa, e com a transformação da maioria em todo. O pior não era Sócrates, mas o socratismo. E, sobretudo, o "socratismo na alma", a obsessão do controlo, os tiques de obediência e conformidade, muitas vezes nem sequer requeridos pelo líder.
Urgia, talvez, a construção de maiores equilíbrios, freios e contrapesos político-sociais. Mas Cavaco, se pensava isto, nunca o disse de forma sistemática. Nunca partiu de si, por exemplo, a ideia soarista de um congresso dos descontentes, do tipo "Portugal: Que Futuro?".
Por outras palavras: as perplexidades de Belém eram sempre vividas em solidão.
Mas pesavam. Pesavam, nessa área indefinível, entre os encontros privados e os amigos, os apoiantes e os círculos intelectuais, os receios e as palavras sussurradas.
E Cavaco ia ouvindo o país. Terá percebido que, sem subversão, era preciso dar voz a reclamações justas e espantos frequentes. E houve os vetos e as mensagens, afinal os únicos veículos autorizados de "pensamento presidencial" oficial.
E, da maioria, veio a minoria. Isto é, novas regras de jogo.
Um governo onde o PR não interfere. Um Parlamento onde Belém não toca.
Os actores políticos poderão esperar, do presidente, um árbitro disciplinador, mas não um jogador, a não ser que haja deserção massiva.
Será assim o Natal institucional. Um Natal, ainda por cima, de pessoas de carne e osso, que transportam às costas histórias e perfis, contradições e paradoxos.
Tal como o Natal essencial, será melhor compreendido pelo coração do que pelo intelecto. Mas é preciso fazer um esforço para o racionalizar.