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As serras cheiram a cinza e queimado. Em centenas de aldeias há portugueses que ainda sentem a passagem do fogo, gente que hoje vestirá roupa fresca e cheirosa para o bailarico, mas que dificilmente conseguirá escapar à impressão de que estão impregnados do que não sai, do que não se esquece, do chão negro que ganha asas e novas partículas que invadem a pele, as roupas, a memória, o olfato. É tudo verdade, sabemos que o é, só que é 15 de agosto e eu continuo a acreditar que aquilo que nos une, aquilo que nos sedimenta e nos faz portugueses, é mais forte do que qualquer medo, cheiro, tragédia. Hoje é a noite em que as freguesias estarão cheias de pessoas contentes e tristes. Contentes por poderem voltar a dançar no largo da sua infância, com os amigos de sempre, com os sabores de que têm saudades durante todo o ano, com as músicas pirosas que obrigam músculos adormecidos a renascer. No entanto, e ao mesmo tempo, tristes por estar a chegar a altura em que terão de regressar outra vez ao estrangeiro que os acolheu, aos lugares onde ofereceram o melhor que tinham para conseguirem (quem sabe) regressar um dia. Hoje, feriado da Assunção de Nossa Senhora, celebra-se o respeito que temos por nós próprios, pela nossa infância, pela família que já não está, pelos amigos que resistem, pelo país que amamos, pelo que ainda sonhamos para nós, para os nossos filhos e netos. Há cheiro a fumo nas roupas hoje impecavelmente limpas, mas no largo de cada uma das nossas freguesias, dança-se, come-se e bebe-se sem pensar em mais nada. Faltam-nos mais dias assim.