Para usar uma fórmula gasta, pode dizer-se que os portugueses têm com o Estado uma relação de amor-ódio. O mesmo sucederá com outros povos. Tanto dá. Por agora, interessa-me Portugal.
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Diz-se mal do Estado pelos impostos que cobra, as multas que aplica, as limitações que impõe, os serviços que não presta ou... que não prestam. Esperamos do Estado tutela, apoio, protecção, serventias. Somos viciados em Estado. Estadodependentes. Sem o seu conforto e regaço não sabemos viver.
Ocasionalmente, surgem discursos propondo uma cura de desintoxicação. Por norma, não passam disso mesmo: discursos. Os portugueses ouvem, aplaudem e, no minuto seguinte, estão a pedir mais um subsídio, apoio ou protecção.
A verdade é essa: o Estado só tem o peso que tem por os portugueses não saberem viver sem ele. No fundo, não acreditamos que seja possível encontrar saídas fora da órbita do Estado. É um facto. E contra factos... sobretudo em alturas, como a presente, em que há que ser expedito e pragmático. Este não é o momento para o Executivo se demitir de assumir responsabilidades, apostando, no escuro, em soluções que passem por um mítico levantamento cívico da sociedade que veria na redução dos impostos o seu toque a reunir. O que não significa que sejam de ignorar propostas de redução, por exemplo, da retenção do IRS nos escalões de rendimento mais baixos ou de diminuição da taxa social única para empresas produtoras de bens transaccionáveis.
Mas talvez a dita "sociedade civil", sobretudo os seus estratos mais ricos, pudessem aproveitar a crise para fazer prova de vida e "criar currículo" que lhes desse reputação, uma vez ultrapassada esta fase. Podem fazê-lo enquanto cidadãos ou enquanto homens de negócio.
Comparado com outros países, Portugal tem uma baixa taxa de financiamento privado das iniciativas de solidariedade. Acresce que os apoios privados tendem a concentrar-se em sectores que garantam visibilidade mediática. Falta grandeza de alma aos nossos filantropos.
Vive-se, hoje, uma situação em que os dramas sociais se sucedem, fornecendo terreno fértil a populismos de vária cor. Aqueles que, por mérito, trabalho ou sorte, conseguiram que a vida lhes fosse pródiga têm, aqui, uma oportunidade única de provar que a fraternidade não é exclusivo estatal. Com iniciativas próprias ou apoiando as instituições que, no dia-a-dia, vão providenciando o apoio de que os mais carecidos necessitam, poderão dar uma prova concreta de que é possível organizar a sociedade de outro modo.
Se essa intervenção cívica for complementada com novos projectos de negócio, novos investimentos que antecipem as oportunidades que o nevoeiro da crise esconde, é possível que, quando o sol raiar de novo, haja mais quem acredite que é possível, e desejável, viver com menos, embora melhor, Estado.
Caso contrário, pode-se arreigar, ainda mais, a convicção oposta: afinal, o que nós hoje vemos são os governos a resolver problemas resultantes do funcionamento dos mercados. Ou seja, precisamos de mais Estado. E se esses programas servirem, e perpetuarem, os que beneficiaram do sistema anterior? Nesse caso, teremos o pior dos dois mundos. E não haverá nenhum incentivo para responder ao desafio aqui lançado...