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Ontem, assinalou-se o 25 de Abril na Assembleia da República e nas salas, marquises e quintais de vários portugueses. Escolhi o verbo "assinalar" porque penso que o "comemorar" trouxe algum ruído à discussão. Ruído que Ferro Rodrigues resolveu alimentar. O presidente da Assembleia da República faz lembrar aqueles adolescentes que desafiam os encarregados de educação, prometendo fazer asneiras muito piores do que aquelas que a sua bravura permite. A ameaça "vou fazer a mala, sair de casa e nunca mais vos falo!", normalmente traduz-se em qualquer coisa como: jovem sai de casa às 18 horas e volta às quatro da manhã, quando se acabou o dinheiro e está um bocadinho maldisposto, a precisar que a mãe lhe faça uma canja. É desta forma que deve ser entendida aquela exclamação de Ferro Rodrigues, em resposta a João Almeida: "Há uma grande maioria neste Parlamento que quer celebrar o 25 de Abril e vamos celebrar o 25 de Abril!". Dito assim parecia que íamos ter bar aberto, bola de espelhos, música até às tantas. Uma pessoa até fica desiludida, quando vê que é apenas uma sessão solene. Se bem que o convite à Capitães de Abril parece ao mesmo tempo uma provocação e uma tentativa de homicídio: então vamos chamar membros da população de risco para saírem de casa e se enfiarem num espaço fechado? Enquanto fazem pirraça a todos os outros velhinhos, que nem sequer podem jogar damas no jardim? Só porque uns participaram num golpe de Estado e outros não? Acho mal.
Num tempo de tão irritante concórdia, em que todos nos elogiamos e aplaudimos uns aos outros, e até a oposição dá palmadas nas costas do Governo, resta-nos Ferro Rodrigues como única figura com quem todos concordamos em discordar.
A minha relação com Eduardo Ferro Rodrigues remonta ao tempo em que ele era ministro da Solidariedade e Segurança Social, e eu uma espectadora atenta dos Moto Ratos de Marte, na SIC. De que forma é que estes dois acontecimentos se relacionam? Sempre que eu via Ferro Rodrigues no telejornal, perguntava aos meus pais se era o Limburger, o temido vilão que vinha do planeta Plutarko para atormentar os pobres dos ratos. Na altura, era apenas uma inocente referência às parecenças físicas ou, se quiserem, uma demonstração precoce de maldade, já que incorria em "body shaming" muitos anos antes de alguém inventar o "body shaming". O que eu não sabia é que, com o passar dos anos, Ferro Rodrigues viria a dar a conhecer essa sua faceta de vilão desagradável, tal qual Lawrence Limburger. O pior é que agora os Moto Ratos somos nós, que temos de ouvir as maiores enormidades. Como a mais recente contrapergunta estupefacta de Ferro: "Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?!", quando questionado sobre a eventual utilização de máscaras nas comemorações. Se calhar o jornalista foi pouco claro ao formular a pergunta, e não esclareceu que não se referia a máscaras da Patrulha Pata. A ideia não era ter Marcelo Rebelo de Sousa de Chase e António Costa de Marshall... Ferro Rodrigues acrescentou ainda: "diria até, um pouco a brincar, embora o momento não esteja para grandes brincadeiras, que andou muita gente mascarada de abrilista durante estes anos todos e agora deitou as garras de fora". Aqui tenho de concordar. E acho que o nome que encontramos a encabeçar essa lista é precisamente o de Ferro Rodrigues. Um homem que tanto preza a liberdade, mas parece ficar especialmente incomodado com a liberdade de expressão de certos deputados na Assembleia. Já quando resolveu admoestar André Ventura por usar a palavra "vergonha", disse: "não há liberdade de expressão quando se ultrapassa a liberdade de expressão dos outros, que é aquilo que o senhor faz a maior parte das vezes". Ferro parece adepto daquela liberdade que eu também adoro quando discuto com o meu marido: "tens liberdade para concordar comigo. E chega".
Desta feita, resolveu acrescentar uma nota de rodapé à intervenção de João Almeida (que discordou da comemoração do 25 de Abril) como se fosse o Manuel Moura dos Santos, o azedo jurado dos "Ídolos", que está ali para mandar abaixo os concorrentes. E atenção que, se a Assembleia fosse o "The Voice", eu não viraria a minha cadeira para aplaudir João Almeida e muito menos André Ventura, mas o mau feitio saliente de Ferro Rodrigues anda a agastar-me. Parece aquele tio mais velho que está à cabeceira da mesa, dizendo tudo o que pensa, sem filtros: avalia desde o comprimento da saia da sobrinha até às convicções da avó. E nós que só queríamos que ele nos passasse o sal...
*Humorista