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Por estes dias, em Lisboa, há milhares de pessoas que levam a intimidade à rua. Posso não ser corporativo, e até fugir-me a alma para o cinismo, mas teria pedras dentro de mim se não gostasse de ver tamanha alegria.
As coisas da fé tantas vezes são iguais às coisas do amor: para uns, tímidas a ponto de não se exteriorizarem, um escondimento apaixonado; para outros, pelo contrário, iguais a paixões de Shakespeare. Ainda mais na juventude, em que fé, amizade e partilha se misturam no temor e na esperança. Entre um e outro, lá vai aparecendo o futuro.
Depois há isto agora em Lisboa e no país: pessoas que são pessoas. Parece evidente mas é o que elas são. Do Mundo inteiro, completas na sua individualidade, na vida vivida à maneira de cada um e de cada sítio, de cada etnia, de cada identidade e orientação, e de tantas culturas e países. Estes crentes não têm todos a mesma cara.
Nem todos a mesma força ou as mesmas fragilidades. São um povo feito de muitos povos. Tanta diversidade, que é também muito barulho (um jovem silencioso já envelheceu), para falar de fé, de Cristo, e de uma vida mais fraterna, mais solidária, mais justa. Longe do clericalismo à antiga que tanta gente ainda acha ser o catolicismo. De resto, é também uma grande festa.
Eu sei que os olhos mais difíceis são os da imaginação. É mais fácil olhar para este evento e reduzi-lo aos sobressaltos. Sobretudo é mais fácil, como tem acontecido, ridicularizar a experiência religiosa destas pessoas como algo histriónico e pouco higiénico que deve ser mantido fora da rua.
Em plena época de multiculturalismo e de tolerância religiosa - mas também de juventudes atávicas e de individualismos que ocultam grandes solidões -, desdenhar destas pessoas pode ficar bem como sobressalto moral, mas é tão desprovido de imaginação que chega a ser medíocre.
Isto não impede o escrutínio do dinheiro público (nosso dever como cidadãos), o debate sobre o papel do Estado, nem principalmente impede a indignação justíssima com o que sabemos sobre a pedofilia na Igreja - mais do que um horror e uma mancha, um crime que aguarda punição.
Porém, confundir o justo com o injusto, dar uma única face a tantos milhares de jovens que têm o mérito de se inquietarem com a vida, parece-me olhar no diminutivo, não usar a imaginação, e pensar que a parte é mais do que o todo. Uma espécie de beatice laica.