A marca deste Orçamento é a abstenção. Os partidos à esquerda do PS abstêm-se para aprovar o Orçamento e este abstém-se quanto ao país.
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A Esquerda usa a abstenção para apoiar sem se responsabilizar. Isto diz muito sobre a forma como as contradições na base de apoio político do Governo limitam o que se pode esperar desta legislatura. Será uma dose reforçada da legislatura anterior, dominada pela gestão política do quotidiano. Essa gestão política tranquila do curto prazo tem sido possível devido ao contexto europeu e internacional muito favorável: quando tomamos consciência de que a política de juros do Banco Central Europeu foi responsável por 3/4 da redução do défice, é fácil perceber como isso facilitou a reconciliação entre as obrigações europeias do país (cujo cumprimento não é um fim em si mesmo, mas instrumental ao financiamento necessário do país) e as pressões políticas da base política de Esquerda que suporta o Governo. Se o contexto europeu e internacional se alterar, essa reconciliação entre as pressões políticas internas e externas será bem mais difícil.
A maior fragilidade na base de apoio político deste Governo vai acentuar ainda mais o seu abstencionismo em relação aos desafios estruturais que o país enfrenta. Este é um Orçamento, na melhor das hipóteses, de fim de legislatura, do qual não resulta qualquer projeto ou visão estratégica para o país. Um Orçamento para financiar o status quo. Feito de pequenas e cirúrgicas medidas necessárias para compor a aritmética política do Governo. A habilidade política do primeiro-ministro pode até ir garantindo alguma estabilidade, mas é uma estabilidade presa pelos arames do contexto europeu e internacional e que não permite enfrentar os desafios estruturais do país. Isto não exclui que alguns ministérios possam vir a adotar medidas relevantes. Não devemos descurar a importância que algumas reformas de baixo perfil e exigindo poucos recursos podem ter. Mas o Orçamento é a principal mensagem política de um Governo para o país e o mais relevante instrumento para prosseguir o que essa mensagem sinaliza. Sobre isso, este Orçamento é... abstencionista.
Este é também, por último, um Orçamento abstencionista face aos factos. Em que a divergência entre o Orçamentado e o que será executado é cada vez maior. Há que reconhecer que esta realidade não é nova, mas nunca assumiu as proporções dos últimos anos e este deve ser mesmo o primeiro Orçamento em que um Governo usa (para a mesma despesa) números diferentes, consoante reivindica mais investimento ou que vai atingir um excedente... Este não é um problema técnico, mas democrático. Se nos preocupamos com fake news, o que dizer de fake budgets?
* PROFESSOR UNIVERSITÁRIO