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O Português, já se sabe, é uma língua muito traiçoeira. Olhando a imagem de Pedro Passos Coelho e de Paulo Portas sorridentes durante a votação do Orçamento do Estado (OE) para 2014 poderíamos ser levados a pensar que, tanto um como o outro, estariam a dar-nos tanga. Não é credível esta teoria só sustentada pelo congelamento de um momento na câmara de um fotógrafo. Nem mesmo o mais descarado dos cínicos ousaria brincar com o presente e, menos ainda, com o futuro dos portugueses. A tanga é outra. E, bem vistas as coisas, tem muito a ver com o país de traje reduzidíssimo que Durão Barroso diagnosticava no ido 2004. Aburguesado em Bruxelas, o antigo primeiro-ministro pressiona agora o Tribunal Constitucional para viabilizar medidas que o também presidente da Comissão Europeia admite poderem encobrir a sua velha conhecida tanga. Mesmo que para isso tivéssemos de continuar a vestir uma roupita emprestada, uns valentes números abaixo do admissível, muitos furos aquém do limiar do conforto.
Que este orçamento nos vai deixar de tanga parece não ser surpresa para ninguém. E se esta é uma evidência para todos nós, é-o ainda mais verdade para os funcionários públicos. A depauperação das condições de vida dos servidores do Estado atinge proporções desmesuradas, por muito que a ministra das Finanças fale, como reiterou no fecho do debate na Assembleia da República, de um "contexto de emergência" que exige medidas "excecionais". O OE é, como bem fez questão de lembrar António Costa no DE de ontem, o verdadeiro guião para a reforma do Estado de Paulo Portas. Ironicamente, o guião travestido de Portas foi defendido ontem no Parlamento por Maria Luís Albuquerque, enquanto, na bancada do Governo, o líder centrista alternou um ar pesaroso com sorrisos mais ou menos desbragados.
O OE aprovado ontem pela Maioria PSD/CDS não vai, no entanto, deixar apenas todos os portugueses de tanga tamanho XXS. Ele marcou definitivamente a clivagem entre os partidos do Governo e a principal força da Oposição. E enterrou intenções espúrias de consenso. Tudo isto num dia em que os portugueses voltaram a sair à rua. Pediram a demissão do Governo nas bancadas da Assembleia da República, manifestaram-se junto às escadarias de São Bento sem as violar, ocuparam pacificamente quatro ministérios e cantaram para protestar contra os cortes na cultura. Sem a violência a que Mário Soares metaforicamente aludiu e que o Governo e os seus satélites logo se apressaram a diabolizar.
No meio do previsível aumento da contestação, a Oposição já anunciou que vai pedir a fiscalização do Orçamento ao Tribunal Constitucional, não vá Cavaco Silva não o fazer antes da promulgação. Depois é só esperar pelo veredito dos juízes do palácio Ratton. Sendo certo que um eventual chumbo ao OE custará mil milhões de euros aos cofres do Estado e obrigará Passos Coelho a um plano B, a sua aprovação terá outros custos. Cegos, surdos, menos mensuráveis. Ainda que, seguramente, bem mais gravosos para a fragilizada sociedade portuguesa.