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O primeiro-ministro pediu ontem ao procurador-geral da República - por portas travessas, é certo - que ponha termo às especulações geradas em torno do seu nome a propósito do caso "Face Oculta". "Isto está a passar todas as marcas", clamou José Sócrates, exigindo saber se, de facto, foi escutado durante "meses a fio", se "essas escutas foram legais e se é possível fazê-las num Estado de Direito. Eu tenho o maior interesse em ser esclarecido sobre isso", disse o líder do Governo. Tem ele e temos nós: não apenas interesse, mas também o direito de sermos esclarecidos, porque o assunto é demasiado grave para que uma só sombra possa pairar sobre ele para todo o sempre.
Seria necessário um verdadeiro tratado, ornamentado com a mais elevada sapiência, para explicar aos incautos quais são as causas e as consequências do modelo em que assenta a investigação judicial em Portugal e por que razão temos (quase) todos a sensação de que o crime continua a compensar. Um país que não confia no seu sistema de Justiça é um país que não se recomenda. E os exemplos de que a desconfiança tem razão de ser abundam. Infelizmente.
Uma das consequências deste emaranhado está à vista: temos hoje um primeiro-ministro sobre o qual recaem suspeitas de enorme gravidade e andamos há semanas a assistir a um lamentável jogo do empurra entre duas das principais figuras do Estado: o procurador-geral da República e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça. É por isso que José Sócrates tem razão, quando diz que "isto está a passar das marcas". Eu diria mais: isto é verdadeiramente insustentável. Não se trata de reclamar que os "tempos" da Justiça se verguem aos "tempos" da política. Trata-se de reclamar que os principais agentes da Justiça não permitam, como permitiram, que o novelo cresça como cresceu. É que não é apenas a imagem do primeiro-ministro que está aqui em causa. É a imagem do país.
Este caldo permite, como é óbvio, aproveitamentos políticos que têm o condão de fazer alastrar a mancha. A intervenção feita sobre o caso por Manuela Ferreira Leite, ou a suprema hipocrisia usada por Pacheco Pereira na análise do mesmo, são bons exemplos disso. A líder do PSD chegou a exigir, no Parlamento, ao primeiro-ministro que se pronunciasse sobre as escutas! Uma de duas: ou Ferreira Leite conhece o conteúdo das escutas, o que é muito grave; ou não conhece e perdeu uma boa oportunidade para estar calada.
A confusão justifica uma pergunta: deve José Sócrates fazer uma declaração formal ao país sobre a matéria, como reclama a líder social-democrata? É duvidoso. Se o fizer, isso pode ser entendido como um sinal de fraqueza. Se não o fizer, arrisca-se a ser queimado em lume brando.
No ponto a que chegámos talvez seja melhor esperar pelas conclusões do processo. E, a seguir, carregar no botão "recomeçar", discutindo e rediscutindo tudo o que for necessário para que casos como este não voltem a acontecer. A menos que nos dê um especial gozo viver no país do consta que o primeiro-ministro...