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Portugal adoptou há muito uma tradição inaugurada pelos americanos, no Governo de Nixon. Inspirados nos 100 dias em que Napoleão governou a partir do exílio, também nós passámos a fazer o balanço dos primeiros 100 dias dos nossos governos. Quando o Governo conta com o apoio de uma maioria absoluta no Parlamento, o exercício tem muito pouco de profícuo, porque, em bom rigor, 100 dias não chegam para avaliar um trabalho que deve ser executado ao longo de quatro anos. A coisa é diferente quando, como acontece hoje, temos um governo minoritário e o país vive seriíssimas dificuldades: em 100 dias acumulam-se sinais suficientes para (tentar) perceber o que aí vem.
Por coincidência, o episódio ocorre dois dias depois do início das comemorações do centenário da República. Há um século o país vivia acabrunhado, os portugueses traziam entranhada a sensação de que não havia saída possível, de que só a refundação da pátria evitaria a sua decadência e o eventual desaparecimento enquanto nação. Hoje, a amargura não é tão gigante. Mas a nossa alma só não anda mais estremunhada porque todos sabemos que há um porto de abrigo chamado União Europeia onde nos podemos aconchegar até que a tormenta económica e financeira passe, ou pelo menos reduza a intensidade.
Isso não chega, contudo, para esquecer o óbvio: Portugal vive no fio da navalha, à mercê do bom senso (ou da falta dele) dos seus principais actores políticos. A instabilidade e a crispação políticas, pedra-de-toque destes primeiros 100 dias de governação, servem uns e outros - servem para o Governo erguer a bandeira da crise institucional que pode redundar em eleições antecipadas; serve a Oposição (a Esquerda capitaliza o descontentamento e a Direita dá-se ares de responsabilidade para satisfazer o (seu) eleitorado; serve o presidente da República, que as usa para se transformar no fio-de- -prumo do país, conseguindo com isso dar passos seguros rumo à sua recandidatura. Parecemos, por isso, um barco em alto mar, sujeito à vontade das ondas: andamos de um lado para o outro, sem a certeza de sermos capazes, todos juntos, de arrostar com a intempérie.
E é este sentimento que marca os primeiros cem dia de governação.
O Governo cedeu à Direita para poder ter o Orçamento do Estado (OE) aprovado. Consequência: o documento é mitigado e está longe de ser o ponto de viragem que exige o duro caminho até ao saneamento das contas públicas. É um mal menor? Talvez. A não aprovação do OE seria trágica para o país. Uma coisa é certa: para chegaremos a 2010 com o défice nos 3%, o grau de sofrimento terá de ser muito mais elevado.
O Governo cedeu à Esquerda na aprovação do casamento de pessoas do mesmo sexo. Nada contra. A não ser o facto de haver outras prioridades bem mais importantes para o país.
O Governo, mantendo embora o essencial, cedeu à corporação do sistema educativo. Para acalmar os sindicatos, a ministra teve que desfazer quase tudo o que a sua antecessora tinha feito. Um sinal claro de que esmoreceu a veia reformista com que Sócrates arrancou, por causa, claro, dos cálculos políticos.
O Governo tem nos braços a maior taxa de desemprego da história da nossa democracia. Verdade que tem feito um esforço para controlar a extensão do fenómeno com apoios sociais. Os que existem não vão chegar, isso é certo.
O Governo teve de enfrentar a hostilidade de Belém quando o famigerado "caso das escutas" rebentou. Fê-lo com arte inversamente proporcional à forma desastrosa como Cavaco Silva geriu o dossiê. Cavaco Silva soube, porém, ultrapassar o episódio - e recuperou o protagonismo quando, no importante discurso de Ano Novo, apontou o caminho ao Executivo e à Oposição.
Estes serão, porventura, os factos politicamente mais relevantes dos primeiros 100 dias da governação de Sócrates. Todos juntos mostram à saciedade que a teoria do país periclitante, perigosamente periclitante, está correcta. Como se sai daqui? A teoria diz que só com dinamismo económico se cria riqueza e gera emprego, única via de desanuviar a tensão que por aí anda. O segredo está em passar da teoria à prática.