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Serão os muçulmanos o inimigo? A religião não tem culpa, é desculpa. As grandes religiões moldaram o nosso Mundo e dividiram-no, quando foram a terrena encarnação do poder ou da guerra por ganhá-lo. Um mesmo livro bíblico, o Êxodo, inspirou tanto Martin Luther King como o Ku Klux Klan. A religião é capaz de revelar o melhor e o pior que há em nós. E nem precisamos de invocar as Cruzadas ou a Inquisição. A uns anima-os cuidar do próximo e a outros disparar as armas do ódio, estilhaços de explosivos ou, como na noite negra de anteontem, soltar a fúria de um camião assassino e converter a festa nacional francesa num cenário de terror.
Há na Europa, que professa religiosamente o euro, perto de 25 milhões de cidadãos de origem muçulmana, pelo que o islão é também uma religião europeia. Mas que a Europa e os europeus não se confundam: o inimigo não é o islão, mas o fanatismo que mata e morre matando, enquanto cavamos a diferença e as desigualdades.
Doem-nos mais os mortos europeus que os do resto do Mundo. Acontece que um dos dados mais reveladores sobre o terrorismo jiadista, que amiúde passa despercebido, é que o maior número de atentados ocorre em países muçulmanos e que a maioria das vítimas, e são às centenas, professa o islão. Em poucos dias, o aeroporto de Istambul, a mesquita de Medina, um restaurante de Daca ou uma geladaria de Bagdad foram os cenários de terror escolhidos pelos jiadistas para enviar a sua mensagem letal, a coberto de retórica pseudo-religiosa. Sim, o jiadismo é também inimigo do islão.
Depois de Bruxelas e Paris, por três vezes em menos de um ano, choramos agora os mortos de Nice. Sangue, morte, alvos simbólicos e muito espetáculo, eis do que se alimenta o terror para espalhar o medo e destruir a ambição de uma Europa unida, próspera e em paz. Inimigos da liberdade, interessa-lhes que voltemos a fechar fronteiras, que destruamos a livre circulação e endureçamos as políticas de imigração e asilo, que demos rédea solta à xenofobia e, finalmente, aceitemos o desafio diabólico para uma guerra santa com o islão mundial. Converteríamos, assim, uma parte da população europeia, a que professa a religião islâmica, num inimigo interno que há que combater e isolar. O delírio totalitário parece ficção, mas Donald Trump nos Estados Unidos e Victor Orbán na Hungria ou Jaroslaw Kaczynsky na Polónia não propugnam coisas muito distintas. É o partido da guerra e tem fiéis em governos e oposições de diversos países europeus. Ceder ao medo é prestar-lhes um serviço.
*DIRETOR