O grande pecado de Rui Moreira, no que diz respeito às reticências que tem colocado ao processo de descentralização, é este: o autarca do Porto disse em alta voz o que os seus colegas de muitos e muitos municípios pensam em voz baixa. Moreira limitou-se a verbalizar o óbvio: o envelope financeiro que o Governo definiu para os municípios é uma brincadeira de mau gosto, quando se compara o vil metal com as competências transferidas. Neste país de costumes brandos e chatices poucas, até para dizer o óbvio é preciso liberdade (política, bem entendido) - é isso que distingue Moreira dos tantos que o apoiam por trás e o criticam pela frente.
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Aos olhos dos puristas, o presidente da Câmara do Porto cometeu um gigante sacrilégio: fragilizou a Associação Nacional de Municípios (ANMP), ao decidir abandoná-la. Merece, portanto, o purgatório. Lamento, mas o que Moreira fez foi prestar um serviço à ANMP: meteu-se numa batalha que a associação não pode travar, por conta dos equilíbrios políticos que está obrigada a gerir. As águas estavam (quase) paradas. Moreira agitou-as - e dessa agitação beneficiarão todas as autarquias, mesmo as que preferem gerir os silêncios para não ficarem presas às palavras.
O astuto Marcelo percebeu bem o que está em causa. Ao receber Moreira no Palácio de Belém deu um sinal claro: sabendo o que pensam os autarcas sobre a matéria, o presidente da República sufragou um descontentamento que, sendo generalizado, teve por fim um porta-voz à altura. Ribau Esteves, o vocal presidente da Câmara de Aveiro, viu na coisa um lamentável "circo político". Nada disso: tratou-se de um ato político. E dos bons. Sem ponta de pecado, portanto.
*Jornalista