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A Mafalda acordou-me com gentileza: a casameu, achutemoto. Seria o bebé a bolçar, o bebé com alguma dor? Mas o bebé não bolça, o bebé dorme, o bebé não chora - é um bebé sem exigências de bebé. Tirei os tampões dos ouvidos, a Mafalda repetiu: a casa tremeu, acho que foi um terramoto.
Fresca do tremor, a segundos do abano, a Internet relatava cinco ponto nove na escala que uns dizem de Rícher, outros de Ricter. Já era um grande pequeno terramoto. A casa sobreviveu ao pequeno grande terramoto de 1969, talvez agora não aguentasse as réplicas. É que tremeu mesmo, disse a Mafalda.
Fizemos duas mochilas, pegámos no bebé e fomos sobreviver para o carro. Entretanto o Governo pedia serenidade e Marcelo pedia calma. Em Campo de Ourique, as três pessoas que passeavam os cães faziam-no com calma e serenidade, mas de facto um casal jovem discutia à porta de casa.
Num parque de estacionamento sem prédios à volta, aguardámos as réplicas ou, quem sabe, a ocorrência rara de um abalo maior. Saí do carro e deitei-me com a orelha colada ao chão. Queria ouvir o rumor do leviatã, essa coisa grande e violenta que a Terra diz quando treme. Mas não ouvi segredos nem revelações nem a voz do Mundo. Era só o alcatrão de um parque de estacionamento.
No telemóvel, os canais passavam as imagens do desastre. Uma sala a preto e branco onde abanou um candeeiro, um corredor pelo qual fugiu um gato, e o momento em que dois pivôs da CNN, em directo, sentiram algo no estúdio e olharam para o lado sem interromperem a emissão.
Como em Lisboa um terramoto nunca está sozinho, vem sempre acompanhado pelo de 1755, fomos para o topo do Parque Eduardo VII para assistir ao nascer do sol, que podia ser o nosso último. Ouvimos um estrondo que fez o carro oscilar. Gente corria desenfreada. Pássaros saíam em bando das árvores num voo de fuga.
Afinal, a gente corria por jogging, num excesso de saúde que só pode dar doença, os pássaros faziam o que os pássaros fazem à primeira luz (acordar), e o estrondo, valha-me Deus - que assistiu a todos os terramotos desde o Génesis -, era o primeiro avião da madrugada.
De seguida tomámos o pequeno-almoço numa padaria. É como dizem: depois de sobrevivermos, tudo sabe melhor. Que belíssimos pães com fiambre!
Voltámos a casa a tempo das novas filmagens da catástrofe. Na casa de alguém dois azulejos tinham-se rachado. E na nossa, trágica e ligeiramente, os quadros ficaram um tanto desalinhados.
Por fim, o bebé espreguiçou-se e abriu os olhos para comer. A inocência dos bebés é enternecedora: durante esta provação, a Teresa dormiu sempre.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia