"O Mundo inteiro é um palco" e no nosso trocaram esta semana de papel Aníbal Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Ambos tiveram noção da boca de cena mas cada um assumiu um lugar muito diferente na peça que lhe tocou representar.
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Dizem os livros que na passagem do classicismo para o romantismo se perdeu a primazia do enredo - a que Aristóteles chamava a "alma da tragédia" - para a primazia do personagem.
Já no período pós Beckett, "a plateia não segue relações entre os personagens mas as relações entre os vários subsistemas cénicos (verbais, visuais, sonoros), onde o personagem perdeu a sua proeminência e foi dissolvido no fluxo dos elementos da performance".
Não consigo deixar de olhar para esta troca presidencial sem me reportar à arte da representação, em particular ao teatro com as suas regras definidas e refletidas.
E Cavaco Silva parece encaixar bem nesse período romântico em que a "alma da tragédia" revolucionária, da consolidação da democracia e mesmo do crescimento à europeia - que de alguma forma envolvera os seus antecessores - se foi cristalizando na construção de um personagem que se impôs a todos os enredos e que se compôs a partir de uma leitura estrita da função presidencial. Cavaco fez de si, e acima de tudo, o personagem ausente, pétreo, neutro e imóvel, de manto, coroa e cetro constitucionais.
Já Marcelo Rebelo de Sousa parece intuir que " à imagem de um sujeito unificado, que possui um "sentido de si", se contrapôs a fragmentação e o descentramento do sujeito que assume identidades diferentes, em diferentes momentos, identidades que não estão unificadas ao redor de um eu coerente".
Ainda não tomou posse (na hora em que escrevo esta crónica) e já nos povoam a cabeça os subsistemas cénicos do palco onde atua: os sons, as imagens, os figurantes, da campanha, das reuniões pré-presidenciais, dos 10 de Junho pós-presidenciais, dos reis e dos outros presidentes que hão de estar, das celebrações e dos ritos, enfim da performance que engole o personagem mas, eventualmente, construirá um legado.
Ao fazê-lo, o novo presidente, tal como no teatro performativo, "é chamado a fazer", a estar presente, a assumir os riscos, sem nunca negar o jogo ou a ludicidade dessas ações" e, sobretudo, sem assumir a lógica discursiva de um texto predefinido e autorreferencial.
Resta saber se o performer conseguirá reaver os poderes que o personagem dispensou!