O primeiro-ministro jurou várias vezes que jamais justificaria a tomada de medidas duras com o peso da realidade herdada. Precipitou-se. É dos livros: todos os primeiros-ministros usam a herança recebida para justificar o que estão obrigados a fazer, em nome da salvação do país e dos indígenas que o compõem.
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Passos Coelho teve uma ajuda de última hora, é verdade: quando o Instituto Nacional de Estatística nos contou a verdade sobre o défice das nossas contas públicas, ficou claro que algo teria que ser feito para rapidamente estancar a hemorragia.
Sejamos, contudo, claros: a criação de um imposto extraordinário com a amplitude e os efeitos do anteontem anunciado tinha que estar há muito na cabeça de Passos Coelho. Trata-se de uma almofada que serve para mostrar à troika a determinação com que o Governo arranca. As contas têm que bater todas certinhas, sob pena de entrarmos num turbilhão que nos arraste para um caos semelhante ao que se vive na Grécia.
Talvez não valha a pena gastar muito tempo a discutir a (in)justiça do imposto que saca uma parte do 13.ª mês a mais de quatro milhões de trabalhadores portugueses. Se não fosse com um imposto extraordinário, outra medida haveria para garantir receita acrescida.
E, estou em crer, a dor não ficará por aqui. O primeiro-ministro não quis, ou não pôde ainda, deixar claro o que vai acontecer, por exemplo, às taxas do IVA. Do ponto de vista político, teria sido mais prudente mostrar todas as parcelas da factura de uma só vez. Do ponto de vista prático, temos que dar a Passos Coelho o benefício da dúvida: talvez não tenha tido tempo para acertar todos os pormenores de uma medida que mexerá no bolso dos contribuintes.
Dito isto, é preciso dizer também que se o peso da realidade herdada serve para justificar a captação de receita, deve servir também para justificar o ataque à despesa. O esforço brutal exigido aos contribuintes será imoral, caso o Estado não faça a sua parte, cortando gorduras onde elas são evidentes e introduzindo princípios de gestão da coisa pública mais eficazes nos sítios dominados pelo laxismo e pelo carreirismo (e são tantos...). Essa é, porventura, a mais difícil tarefa do Governo: mostrar que o esforço do Estado para emagrecer é, no mínimo, proporcional ao esforço exigido a quem sustenta esse mesmo Estado.
Passos Coelho corre contra o tempo e sem margem de erro. O pior que pode acontecer é que essa pressão lhe roube lucidez. Estamos ainda longe da intolerância social grega, mas, como sempre, convém lembrar que em casa onde falta pão, todos ralham e ninguém tem razão.
O perigo espreita.