A percepção da mudança sente-se na pele quando desembarcamos nas alterações climáticas. Quantas vezes por ano questionamos e vociferamos contra o tempo, a temperatura, o sol e a chuva, o raio da ventania, todos estes factores subitamente mais imprevisíveis do que nunca, sempre à luz da comparação com o passado recente daqueles anos em que "não era assim"?
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Os anos em que as estações do ano não se confundiam e em que o boletim meteorológico anunciava calor pela certa com honras de horário nobre na televisão. Agora que cada dia faz o favor de nos espantar pela rebeldia do clima, boletim meteorológico nem vê-lo. Talvez porque seja impossível acertar ou prever com certezas, talvez porque a meteorologia nos seja servida digitalmente em smartphones que não comprometem nomes nem transformam softwares em bruxos. Mesmo que alguns nos tentem vender a estória de que a questão das alterações climáticas são um mito alimentado por lobbies tão poderosos como os que produzem CO2 em barda, a verdade é que as sentimos na pele. Depois, basta estar atento aos ventos que sopram.
"New Lens" é o nome do documento de planeamento estratégico da petrolífera Shell, revelado pela investigação do diário britânico "The Guardian". Profundamente envolvido na tentativa de resolução das questões ambientais, o jornal tem promovido uma campanha que sensibilize pessoas e instituições para o denominado "desinvestimento" em empresas ligadas aos combustíveis fósseis (por exemplo, a Wellcome Trust e a Gates Foundation). A força da mensagem é reforçada pelo diagnóstico do documento da Shell: a empresa admite internamente que, até ao final do século, a temperatura global poderá aumentar para mais do dobro do nível admitido como provável, sustentável e hipoteticamente reversível pela comunidade científica.
Concretizando, o documento da Shell admite que a temperatura global aumentará para além dos 2º C previstos, chegando aos 4º C a curto prazo e atingindo, posteriormente, os 6º C até ao final do século. Está em causa todo o esforço para a meta mundial da não ultrapassagem dos 2º C derivada das emissões de carbono. Não deixa de ser sintomático que um explorador petrolífero, dedo empresarial perfurador da ferida aberta pelas alterações climáticas, seja utilizado como o defensor improvável da sustentabilidade e do equilíbrio. A teoria da conspiração climática e do lobby ecológico cai por terra quando as notícias são secreta e inadvertidamente reveladas pelo explorador.
O explorador, neste caso a Shell, foi autorizado recentemente pela administração Obama a perfurar o Ártico. Entretanto ancorada em Seattle, a plataforma da petrolífera tem sido alvo de manifestações de activistas da Greenpeace antes da partida para o Alasca. Não consta que Sarah Palin, ex-governadora do Alasca e ex-candidata republicana a vice-presidente dos EUA na candidatura de McCain em 2008, tenha levantado a voz no seu novo canal de notícias online. Na realidade, para democratas ou republicanos, quem manda no negócio do petróleo fica mais perto de mandar no Mundo. Ainda que mande este último às urtigas.
Com a autorização para perfurar seis poços no tempestuoso e gelado mar de Chukchi no Alasca, não é difícil prever desastre semelhante ao ocorrido no Golfo do México há cinco anos com a morte de 11 pessoas. As condições de acesso em tempo útil ao Ártico são as piores possíveis em caso de hecatombe e, segundo o "New York Times", o posto mais próximo da Guarda Costeira mede-se em 1600 quilómetros de distância. Se em 2012 a Shell, apesar de autorizada, recuou nas intenções de perfurar o Ártico por não ser capaz de satisfazer as condições de segurança, questiona-se o que terá mudado em três anos. Pouco ou nada, tendo em conta que é o próprio Governo dos EUA a admitir a probabilidade de 75% para a ocorrência de um derrame.
A conclusão evidente da comunidade científica é de que não há segurança possível na exploração de combustíveis poluentes senão em terra sólida. No entanto, uma das grandes batalhas mundiais do século XXI será pelos recursos energéticos nos mares. Será sangrenta e poluída. São os novos piratas, sem olhos de vidro e ganchos na mão, pouco importados se a temperatura sobe, enquanto o negócio prospera. Até que acabe quando tudo acaba.
MÚSICO E ADVOGADO
O autor escreve segundo a antiga ortografia