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A inveja que sempre senti daqueles que puderam privar, ou simplesmente conhecer mais de perto, o Manuel António Pia terminou ontem, mal soubemos, aqui na redação do JN, da sua morte. E eu adoraria que a inveja tivesse continuado por muito e bons anos, na esperança de o poder conhecer um bocadinho melhor. Um bocadinho melhor que fosse.
Antes de tudo o mais, Manuel António Pina era, na recordação que para sempre dele guardarei, um grande conversador. Sempre que o apanhava aqui na redação procurava encostar-me a ele, na esperança de entabularmos uma conversa (quase sempre sobre a atualidade triste do nosso acabrunhado país). Era, sempre, um exercício de exploração da realidade a partir dos olhos deles.
Por mais mundano que o tema fosse, saía da conversa, invariavelmente, uma leitura que me ajudava a refletir, ou simplesmente a mudar de opinião. O toque poético - "Onde sinto o meu sangue é na poesia", disse o Manuel depois de receber o Prémio Camões - que ele colocava nos temas dava-lhes um encantamento às vezes irónico, tantas vezes cortante e tantas outras apenas cómico. Sim, cómico, porque o Manuel António adorava sorrir e adorava rir, por mais delicada e perturbante que fosse a fonte da conversa.
E eu ri-me com ele, muitas vezes, sempre depois das 23 horas. Quando o fecho do jornal apertava e a crónica do Pina se atrasava, calhou-me (graças a Deus) muitas vezes ligar-lhe para o pressionar. Problema: ele falava-me do tema da crónica, acrescentava que lhe faltava apenas um parágrafo, ou que estava a fazer a última correção: quando nos dávamos conta, já lá iam 15 minutos de conversa. E o fecho do jornal a apertar... Saber que isto acabou, que não se repetirão as nossas tardias conversas, traz-me as lágrimas aos olhos.
Ah: como tinha o privilégio de ser o primeiro a ler a crónica do Manuel António, vi-me muitas vezes a desejar que, com a pressa, ele falhasse uma vírgula, ou pulasse um verbo, ou se equivocasse num dos factos em que sustentava o texto. Essa era a oportunidade para lhe ligar de novo. E, tantas vezes para desespero do Couto Soares, então meu companheiro na chefia de redação do JN, lá ía mais um quarto de hora de conversa.
Ele não se tinha nessa conta - muito, muito longe disso -, mas Manuel António Pina era genial. Os prémios que lhe foram atribuídos são a prova feita pelos seus pares no Mundo da escrita. Os amigos que deixa são a prova feita pelos seus pares no Mundo da vida.
"O Mundo das palavras é uma aventura", dizia o Manuel. O Mundo das palavras escritas em português acaba de perder um dos seus melhores representantes. Com a partida do Pina, acaba a minha inveja. Começam as saudades.