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Em 1499, D. Manuel mandou cunhar uma moeda em ouro quase puro que era a maior, e mais valiosa, do seu tempo. Demonstrava riqueza e era um instrumento importante para as trocas que a descoberta do caminho marítimo para as Índias permitira. A moeda constituiu-se num padrão de referência pela Europa fora. A designada "moeda de português" alcançou notoriedade, em particular entre os membros da Liga Hanseática que dela cunharam várias réplicas (os portugalóides) por a considerarem um exemplo e uma bitola para as actividades mercantis que desenvolviam.
Naquela confederação pontificavam várias cidades que são, hoje, pólos importantes da República Federal da Alemanha. Cinco séculos passados, Portugal e a Alemanha partilham, de novo, uma moeda. Os papéis, entretanto, inverteram-se: o euro é agora, por assim dizer, uma moeda de alemão. Mais do que isso: enquanto no início do século XVI a adesão ao padrão implícito em "O Português", como passou a ser nomeada, traduzia uma vontade de emular a riqueza de um país considerado como modelo, no século XXI parece haver uma vontade do país de referência impor aos outros esses comportamentos, sem cuidar de saber se para tal terão reunidas as condições internas.
Ahistória de O Português foi curta, mesmo que se tenha tornado numa moeda mítica. Poucos anos após, deixou de ser cunhada com regularidade e, menos de um século passado sobre a primeira emissão, cessou de ser produzida. Dizem os historiadores que, não obstante as imensas riquezas que afluíam a Portugal vindas da Índia, em breve nos confrontámos com um défice comercial tremendo que tudo devorava. Deslumbrámo-nos com a abundância de recursos provenientes do exterior. Descurámos a actividade produtiva e comercial: pouco produzíamos e entregámos parte significativa do comércio com a Europa a terceiros, nomeadamente holandeses. Lisboa era um entreposto, aparentemente rico, sem sustentação na actividade económica interna.
Com algum simplismo, pode-se dizer que, desde então, a história se repete: sempre que as circunstâncias nos prodigalizaram meios externos, permitimos a sua apropriação por algumas classes rentistas, desbaratámo-los em consumo e ostentação sem fins produtivos, voltando a transferi-los para o exterior. Foi assim com as especiarias da Índia, o ouro do Brasil, as remessas dos emigrantes ou os fundos estruturais.
Oque passou há quinhentos ou, mesmo, cinquenta anos talvez pouco nos importe. E agora? A "moeda de alemão", apercebemo-nos hoje, é demasiado forte para a nossa economia, cerceando a capacidade exportadora. A mesma moeda que, conjugada com fundos europeus generosos e crédito abundante e barato, criou a ilusão de uma vida fácil e camuflou o bloqueio estrutural do nosso modelo de crescimento. Que fazer? Há uma dimensão externa, perversa, sobre a qual temos um reduzido controlo. Veja-se o programa do Podemos: agora que podem ser poder, concluem que afinal "não Podemos" e o não pagamento da dívida traveste-se na necessidade de concitar vontades e interesses dos países em situação semelhante para criar condições de renegociação da dívida. BCE e União Europeia parecem mais parte do problema do que da solução com todos os riscos políticos, económicos e sociais que daí podem decorrer, incluindo a implosão do euro. Esses perigos não são, porém, o princípio e o fim. Combatê-los começa cá dentro onde é preciso mais microeconomia, mesmo não ignorando a sua interacção com a macroeconomia, bem patente nas alternativas, ou falta delas, para levar a cabo a indispensável desvalorização interna. O ecossistema empresarial, enquanto promotor de crescimento e emprego, deve ser a referência nuclear das políticas económicas. Essa orientação há-de reflectir-se em termos da evolução da envolvente institucional (mais concorrência, melhor regulação, financiamento, estabilidade), das políticas de formação, inovação e internacionalização (in and out), mas também na definição de incentivos para a melhoria da gestão e para a depuração e reestruturação do tecido empresarial. Mudanças virtuosas, indispensáveis para termos uma moeda de alemão.