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As manifestações de 15 de Setembro são um marco na história da democracia em Portugal. Pelo número (mesmo que fosse só metade do que foi propagandeado), pelo momento e pela composição. Estava lá, sobretudo, classe média, vital para a construção e sedimentação de qualquer regime democrático. Média pelos rendimentos. Acima da média nas habilitações e hábitos de vida. Viram-se, de repente, confrontados com a incerteza quanto a um futuro que davam por adquirido. Passaram a conviver com o espectro do desemprego, a ter de poupar justamente quando os recursos escasseiam, a ver a sombra protectora do Estado, à qual, de uma maneira ou de outra, se acolhem, minguar. O mundo imaginado a desabar, na anarquia do salve-se quem puder. E decidiram que era tempo de vir para a rua. Gritar.
A maioria dos participantes não tinha uma agenda política. Apenas desilusão e uma vontade, quase ingénua, de protestar. Na realidade, é à odiada troika a quem, muitos dos manifestantes, devem o continuar a receber salários, pensões ou subsídios. Quando se está falido, fica-se nas mãos dos credores e de pouco adianta chamar-lhes nomes. Mas, então, não há nada a fazer? Cumprir escrupulosamente o que foi acordado é, goste-se ou não, uma boa maneira de readquirir reputação e poder negocial. Para ser eficaz, esta táctica tem uma condição: não nos resignarmos. Negociar. Desenhar alternativas. E aqui começam as dúvidas. Legítimas. É isso que o Governo quer? Ou aceita, acriticamente, a receita? Pior, vicia-se nela? Passar no exame da troika depende da matriz de correcção que for dada aos examinadores. Não são os funcionários que cá vêm que a determinam. Ao deixar essa tarefa para Vítor Gaspar, Passos Coelho arrisca-se às consequências políticas que a um técnico pouco importam. O Chile de Pinochet ainda é, para alguns, um exemplo de sucesso... económico.
O Governo viu e ouviu. Ao Conselho de Estado (e não na Assembleia da República, o que evidencia uma peculiar noção de democracia) foi dizer que recuará no aumento da TSU. Irá procurar alternativas. Quando escrevo, tudo indica que as tentará negociar com os parceiros sociais. É essencial. As manifestações confirmaram o que a sondagem da Católica para o JN já tinha detectado: uma profunda insatisfação com o regime democrático patente, não apenas na queda do PSD ou na subida do voto de contestação (PC e BE), mas também na percentagem nunca vista de quem afirma ir votar em branco ou abster-se. A ingovernabilidade da Grécia começou assim. E este é um problema que deve preocupar-nos a todos e não apenas o executivo.
Em qualquer caso, convém não deitar mais achas para a fogueira. Passos Coelho vai ter de ser cauteloso e rigoroso e muito claro sobre a situação actual e os propósitos prosseguidos. Não pode cometer mais erros. No curto prazo, as dificuldades em reduzir a despesa não lhe deixam grande margem de manobra. Mesmo depois do alargamento do prazo de ajustamento orçamental em um ano, e ainda que seja mais activo nas negociações com FMI, BCE e CE, vai precisar de mais receitas. E vai ter de se explicar. Como um todo, o país atingirá, este ano, uma situação próxima do equilíbrio externo. Se o Estado se continua a endividar, as famílias e as empresas (mais do que) cumpriram a sua parte. Paradoxalmente, vai ser a elas a quem se exigirão mais sacrifícios. Voltemos à Grécia, à sondagem e às manifestações: de uma vez por todas, é altura de quem mais tem, e não apenas de quem mais ganha, dar a sua contribuição solidária. A alternativa é o caos e a destruição maciça de riqueza e da capacidade de a criar. Para além das negociações com os parceiros sociais, o Governo andaria bem se propusesse, aos principais partidos, um pacto tributário que comprometesse os subscritores com o desagravamento fiscal em função de metas concretas. Para a sua discussão e, eventual, subscrição convocaria os titulares das principais fortunas em Portugal. Num momento de crise, a cidadania não se esgota na criação de emprego. Há limites a partir dos quais o povo não é sereno. Vale a pena arriscar?