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As eleições europeias deram resultados surpreendentes? Aqui e acolá talvez, mas é uma profunda hipocrisia abrir a boca de espanto em relação a um movimento há muito indiciado e que se vem desenvolvendo de uma forma progressiva, apesar de tudo autocontida e portanto previsível. Houve uma abstenção enorme! Qual a novidade? Há mais de duas décadas que esta tendência é marcadíssima, prioritariamente em atos eleitorais que a cidadania considera menos ligados ao julgamento do seu quotidiano - e nesse capítulo as eleições europeias têm sido sempre imbatíveis.
Houve votações bizarras e preocupantes? Talvez, aqui e acolá, mas nada que se desloque de um padrão há muito anunciado.
A extrema-direita francesa teve um quarto dos votos e foi a força política mais votada? É verdade, mas também o fossilizado pai de Martine Le Pen já havia humilhado Lionel Jospin, uma década atrás, quando conseguiu estar presente na segunda voltas das eleições presidenciais.
A extrema-esquerda venceu na Grécia e na pátria dos primeiros exercícios democráticos os extremistas da Aurora Dourada elegeram três deputados. E depois? Não era essa a evolução certa destes extremos empurrados pelos alísios da austeridade extrema?
Surgem sinais pontuais de radicalismo na Hungria, na Áustria e na própria Alemanha! O que espanta tal fenómeno, em países que, por bem menores razões e em democracia, já alimentaram dramaticamente movimentos semelhantes no passado mais próximo ou mais longínquo?
Pela parte que me toca, sem verdadeiramente me surpreender, só fico semiperplexo com a votação obtida por meia dúzia de "transtornados" populistas ou mesmo fascizantes, em nações como a Grã-Bretanha - aí, sim, um verdadeiro problema a seguir -, a Holanda, a Dinamarca ou a Suécia. E isto, nos últimos casos, tão-somente porque se trata de povos que passam a vida a encher a boca com moralismos exigentes, quando se trata das escolhas democráticas, para eles erradas e estranhas, dos "bárbaros" da Europa do Sul.
Talvez eles e outros merecessem levar com uma troika, não para a vigilância das suas contas públicas, mas para examinar e prevenir ao milímetro as razões e consequências dessa evolução que faz lembrar a Europa do eixo. Se perseverassem por esse caminho irracional, deviam levar com um novo Tratado Europeu, este não orçamental, este democrático, que aplicasse "coimas e resgates" a quem, irresponsavelmente, seguisse essas derivas próprias de povos incultos e impreparados.
Aliás, face a essas guinadas bizarras, é de elogiar o conservadorismo sensato dos portugueses. Reforçaram ligeiramente o peso político do Partido Comunista e elegeram Marinho e Pinto e um dos seus seguidores. Não me parece que qualquer desses resultados seja antinatural, perturbador ou perigoso. Nem os comunistas portugueses "comem criancinhas ao pequeno-almoço", nem Marinho e Pinto - goste-se ou não da sua idiossincrasia - representa qualquer tipo de fruição antidemocrática.
Ora, então qual a preocupação legítima a alimentar? Uma única. Como se vai passar das palavras aos atos, num processo de normalização das relações dos cidadãos com um sistema - a democracia - que todos reconhecem ser, apesar de tudo, "o menos mau de todos eles", mas com o qual se sentem desconfortáveis?
Julgo que, para começar, enfrentando a realidade com coragem. Quem constrói a democracia são sempre os cidadãos, todos, em conjunto, e assim, se ela não está a corresponder aos seus anseios, a culpa é maioritariamente sua.
É urgente acabar com o "dictate" dogmático de que os cidadãos eleitores têm sempre razão. Em meu entender, tal é mentira. Aceitar que o desgosto com a governação justifica o voto em declarados racistas e xenófobos transtornados tem o mesmo significado que considerar normal que uma frustração pessoal ou familiar legitime a opção pelo alcoolismo ou consumo de drogas!
É inadiável transformar esta tradução pueril de revolta numa altruísta intervenção cívica. Os partidos tradicionais não são eficazes? Nada impede os cidadãos de se reunirem e construírem outros em que se revejam. Não é também difícil, muito menos impossível, "invadir" em massa com uma nova atitude esses mesmos partidos, transformando-os por dentro.
Se os atuais "políticos" não servem porque "são todos iguais", é através de expedientes como os atrás descritos que tal pode ser mudado.
É verdade que tal pressupõe a maçada de sair de casa e sacrificar o tempo e o espaço dedicado à família, aos amigos e até à própria carreira. É incoerente e inconsequente criticarmos e nada fazermos, quando todos, utilizando a sua capacidade e livre arbítrio, têm na mão os únicos instrumentos suscetíveis de fazer alterar o "status quo".
Ainda assim, nada de exageros. Mesmo com tanto desencanto, os ideais democráticos ainda ocupam a maioria dos fofos cadeirões de Estrasburgo.
A Europa de Delors era diferente para melhor? Era.
Os atuais líderes europeus são maioritariamente medíocres e sem dimensão de Estado? Acho que sim.
Tal evolução também tem sido acompanhada pela adulteração da qualidade de muitas das nossas elites políticas, sociais, académicas e culturais? Tenho essa convicção.
Todavia, a inversão desta dinâmica nunca se fará com Le Pen ou Syrizas. Nunca se fará em ditadura. Só se fará em democracia, com mais e melhor democracia, e isso significa povos mobilizados e militantes.
Por isso, mais mãos à obra, mais mobilização, mais intervenção. É um caminho exigente, mas o único sério. Culpar os políticos, sem usar a arma do trabalho e do suor, para os trocar por outros, ou para os fazer seguir as nossas convicções, é um exercício inútil, hipócrita e desresponsabilizante.
Até porque é mesmo verdade: um "povo unido e mobilizado por causas justas", ontem, hoje e sempre, jamais será vencido.