E migrei muito. A maior parte da minha vida foi passada em andanças por aqui e por ali em busca de segurança, bem-estar, futuros melhores. Quando se nomadiza por lugares estranhos, há períodos de pausa e de espiritualidade muito intensos. Espaços que fogem quando nos fixamos, porque as ilusões de segurança fazem-nos sentir omnipotentes. Um dos períodos mais formativos da minha emigração foi na África do Sul, nos anos 70.
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Foi nessa altura que encontrei a pequena igreja de pedra da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Sempre me surpreendeu o facto dos supermatemáticos, superbiólogos, superarquitectos, supermédicos e tudo o mais que a excelência académica pode produzir se acolherem na busca do que não é explicado pela álgebra de Boole nem se vê na electroforese das proteínas. Cedric Myerscough era o jesuíta capelão dessa temperamental comunidade. Em ocasiões especiais, celebrava o culto de uma maneira única, distribuindo a hóstia e fazendo-a acompanhar por um magnífico sherry que consagrava na sua reconstituição, sempre imaginativa, sempre inspiradora, da partilha da Última Ceia. As suas homilias eram, sobretudo, interessantes. Aqui e ali, apareciam pontilhadas por dúvidas que ainda davam mais força às certezas daqueles que tivessem a felicidade de as ter. Fui um crente disciplinado na inimitável paróquia de Cedric Myerscough. Com a solidão que sentia e com o seu estímulo, fui sofrivelmente cumpridor das disciplinas da minha crença. Mas, um dia, enchi-me de coragem e confessei-lhe que vivia no mais terrível dos pecados. Adorava todo o ritual que me tinha sido legado por gerações de judeus, cristãos, cátaros, cristãos-novos e cristãos-velhos. Sentia-me muito bem juntando a minha voz ao coro de melodias antigas que assinalam as diversas fases do culto tridentino, que Myerscough fez notar, tinham partes redigidas pelo próprio Constantino para ser cantadas na basílica de Santa Sofia, em Bizâncio. Era antiga a nossa fé e, aparentemente, eram antigas as minhas dúvidas. "Tenho o enorme problema de não conseguir acreditar". Na penumbra do confessionário, não vi a expressão de Cedric Myerscough. Houve uma pequena pausa hesitante antes da resposta que, quando veio, saiu num tom quase de monólogo "...mas acreditar é o prémio no fim. É preciso procurar com intensidade. Nada é assim tão fácil. É como tudo. É preciso insistir na busca e depois haverá o prémio... I think (acho eu)." Deixou-me seguir sem me impor nenhuma penitência porque me tinha dado tarefa para a vida. Enquanto escrevia esta coluna, tentei saber o que teria acontecido ao jovial jesuíta britânico que tinha escolhido a África do Sul para dar resposta aos seus profundos instintos humanísticos. Encontrei o registo do seu nome num boletim do patriarcado de Joanesburgo. Em Abril de 2002, Cedric Myerscough terá tido (... I think) o prémio da sua imensa fé na Humanidade. Diz o registo que teve um fim da vida muito sereno, aos 90 anos. Direi eu que deve ter tido a felicidade de acabar sem as minhas dúvidas e que nesse seu fim, finalmente, Ele se lhe revelou. Ou Ela