Há quem defenda que escrever sobre um cessar-fogo é mais excitante do que descrever uma guerra. Existe uma natureza implícita nos estados febris, a temperatura, que ajuda à padronização das ideias e dos comportamentos, permite a dissecação profunda dos factos e quase autoriza que os episódios sigam directos para a história.
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Factos são factos e se exacerbados à luz da temperatura febril, acabam por ser demasiado evidentes. Mesmo que as motivações não sejam sempre claras ou evidenciáveis, os factos de guerra são, por regra, facilmente descritos nos manuais. Depois, começa a correr o tempo que permite o balanço, a síntese e, regra geral, o esquecimento do detalhe e do pormenor que pode fazer a diferença. Mas é esse o poder do esquecimento quando se apresenta nobre: limpa e guarda as armas sem procurar uma guerra nova.
O clima insustentável alimentado por alguns dirigentes no futebol português na última semana, à boleia de actos de guerra de energúmenos, significa a ultrapassagem da barreira entre a civilização e a barbárie. Significa que o Mundo, para alguns, ainda é visto a preto e branco mas também à luz das suas cores mata-borrão. É mais do que um sinal: é a prova última de que dificilmente serão capazes de largar a árvore a que estão agarrados para olhar a floresta. Terra queimada. Não é um sinal de stop, é um sinal de proibido. Proibido pensar.
Bruno de Carvalho e Luís Filipe Vieira escudaram-se nas suas retóricas particulares para se atacarem pessoalmente, sob o manto bem largo dos clubes a que presidem. Com maior ou menor sensibilidade e ajuste, com maior ou menor pendência para o analógico discurso lido ou para o digital comunicado escrito, ambos prestaram um mau serviço aos seus clubes e, sobretudo, aos adeptos a que devem respeito. Não é um privilégio pós-dérbi lisboeta, assinale-se: não acredito que haja um dirigente no futebol português que possa tirar a mão do fogo quando toca a incêndios. O tal Mundo, aquele com cores verdadeiras e que inclui F. C. Porto, Benfica, Sporting e todos os pretendentes que já se colocaram em bicos de pés. Todos já protagonizaram, promoveram ou toleraram momentos graves e hipoteticamente incendiários no futebol e noutras modalidades. Mas a gravidade da verborreia (grande parte dela escrita) das últimas semanas, representa aquele primeiro metro do Inferno, onde mais do que saber o que nos espera já se sente que foi ultrapassado o limite.
Duvido, infelizmente, que os protagonistas desta guerra verbal, um com mais ironia e outro com mais conspiração, tenham a noção de ter ultrapassado o limite. A diferença deste momento para outros no passado é que não surge fruto de divergências de opinião ou de lutas pelo poder. Nem sequer surge como jogada táctica sem pudor, jogando nas entrelinhas para ganhar no jogo jogado. É a primeira vez que vejo dois presidentes de clubes a fomentarem guerras pessoais e institucionais baseadas no ódio visceral de adeptos (?), à boleia dos instintos primários, dos falhanços primordiais do ser humano. Da falência. É a primeira vez que vejo que esse é um rastilho sem razão ou motivação aparente. É por isso que sinto que ambos não parecem ter a noção do primeiro metro do Inferno apesar de sentirem os graus da temperatura. É aterrador pensar que qualquer um deles acredite que a fatalidade é o destino. Como se não houvesse culpa, como se não houvesse outra hipótese, como se a história não se escrevesse também tantas vezes sobre a opção de não fazer ou de não dizer. Ou, tão-só, sobre fazer diferente.
Impõe-se um ponto estratégico de diálogo, impõe-se descrever um cessar-fogo. Os confrontos pessoais que potenciam tumultos só podem ter um fim, esse mesmo. Enquanto apaixonados pelo futebol e pelos seus clubes, tanto eu, como o João Gobern e o Rui Oliveira e Costa apelámos (com o Hugo Gilberto, no "Trio D"Ataque" deste domingo), à pacificação no futebol português. Somos nós que, como tantos adeptos, vivemos o futebol, falando alto ou baixo, ironizando ou enraivecendo, falando das arbitragens e dos bastidores, concordando ou discordando. Mas sempre com a beleza do futebol e as pessoas por aproximação. Nunca destilando ódios pessoais à boleia do elogio ou da lembrança da morte, da ignomínia ou dos sentimentos mais vis. Os adeptos, sejam mais ou menos anónimos, não têm que ser pedagogos mas devem evitar a mentira, as pessoas estão fartas que lhes mintam em público. Nós, adeptos, vivemos no jogo desse cessar-fogo a quente que, em determinados momentos, permite e obriga ao esquecimento. Para não começar uma guerra nova.
MÚSICO E ADVOGADO