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A uma semana do fim da campanha para as eleições autárquicas, parecem ser as políticas de imigração (e até a política internacional) a dominar o discurso público de boa parte dos candidatos a câmaras e freguesias, como se Portugal estivesse em vias de ser invadido por uma flotilha não desejada de americanos, chineses, russos ou israelitas a acenar os seus "vistos gold" em pleno ataque à cidadania e à economia europeia. Como sabemos, o que preocupa os nacionalistas, mesmo os autárquicos, são as cores de pele com outras bolsas.
Como os números não deixam mentir, passam a ser matéria de intensa manipulação pelos demagogos. A imigração que nos lesa já chegou há muito e, na esmagadora maioria, limitou-se a adquirir casas que intensificaram a indisponibilidade do mercado da habitação, adensando a crise de famílias sem tecto para morar e a especulação imobiliária mais atroz, desertificando o centro das cidades dos seus habitantes naturais. Depois do Interior, as cidades. Em dez anos, Portugal atribuiu mais de 11 mil "vistos gold" a pessoas que nem cá estão, nem cá estiveram, nem cá trabalham, nem cá descontam, nem cá existem. Uma horda de cidadãos invisíveis de cor branca ou pouco amarela para causar engulhos. Não há coragem para falar deles no debate do país real, talvez porque sejam "okupas" ocultos, não nos tragam comida à porta, apenas escandalosos contribuidores para o aumento brutal do preço das casas que (não) temos para morar.
O problema parece estar confortavelmente instalado no "outro". Colocar a imigração e o aumento da criminalidade ou da insegurança como os principais problemas do país autárquico que vai a votos, pior do que tomar a árvore pela floresta, é cada vez mais desculpabilizador do "ser português". Se estamos a limpar Portugal, só mesmo dos esqueletos que estavam guardados no armário. O que era impensável ser dito na mesa do café é agora bradado no Parlamento sem consequências senão a da tragédia democrática que a pocilga permite. Mais do que a permissividade, o que assusta é a normalização do insulto e da insinuação, como se não houvesse qualquer reflexo na opinião pública ou qualquer peso no voto. Seria extraordinário se na última semana de campanha se falasse a verdade, descolando o discurso eleitoral da demagogia securitária e populista. Seria o país real a falar mais alto.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia