Ao contrário do processo de Kafka, o de Karadzic é certo, público, determinado e notório. Em "O processo", manuscrito que não acabou (e queria ver queimado, após a sua morte), Franz Kafka descreve uma história absurda, claustrofóbica e angustiante. Josef K. (Kafka?), ao acordar, é acusado por um crime que não conhece, por um tribunal secreto, num procedimento arbitrário e confidencial.
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Ao contrário de Josef K., Radovan Karadzic, já sem a barba avucular, sabe bem do que é acusado, ao sentar-se no Tribunal da Haia. Independentemente do que pensa sobre a legitimidade, capacidade, moralidade e justiça da instituição, tem a noção plena de que o responsabilizam pela morte de milhares de muçulmanos e croatas da Bósnia. Só em Srebrenica, lembre-se, morreu o dobro das vítimas do 11 de Setembro.
O tribunal é público, as audiências televisionadas, aos acusados é providenciada defesa e direitos de contraditório, resposta e recurso. Os magistrados chegam de vários países, com diversas formações, e óbvias diferenças em fé, convicções políticas e mundividência. Os acusados e sentenciados têm sido, até agora, dos três grandes grupos que se digladiaram, após o desmoronamento da Jugoslávia.
Houve militares sérvios e croatas condenadas, generais fugitivos de Zagreb capturados, funcionários menores e responsáveis. Nas sessões colocou-se muito o problema da "prova de comando", e da participação de pequenos agentes em grandes tragédias.
Em certa medida, revisitamos o universo de "A Banalidade do Mal", quando Hannah Arendt escreveu sobre o processo de Eichman, em Jerusalém. Mas se Eichman, independentemente da sua culpa, foi raptado ilegalmente, violando a soberania de um estado, já Karadzic é entregue pela própria Sérvia, no dia seguinte aos tumultos que exigiam a sua libertação.
É injusto dizer que Belgrado toma esta medida (e a possível detenção do general a monte, Ratko Mladic) para, oportunistamente, aceder à União Europeia, aos seus fundos e às suas luzes. Se é certo que a Sérvia não quer vogar como estado pária do continente, não é menos correcto dizer que se trata aqui de fazer as pazes com a sua história, dando aos alegados algozes a possibilidade de se defender, direito que não concederam às suas vítimas.
Se conseguir reconciliar o seu nacionalismo, legítimo e saudável, com a denúncia de crimes de guerra e agressão, a Sérvia actual terá dado um passo de gigante. A questão europeia acaba por ser menor, face à purificação da questão nacional.
Por outro lado, o julgamento de Karadzic contrasta com as hesitações face ao Tribunal Penal Internacional, no caso do Sudão. A ONU, a União Africana e a Liga Árabe estão divididas. Há países que não reconhecem a validade do TPI, mas outros limitam-se a dizer que uma coisa é a justiça, e a outra a realidade. Se a justiça do TPI afectar a realidade do processo de reconciliação sudanês, que pereça a justiça.
Se a politização do TPI é perigosa, a sua rejeição - sobretudo por membros fundadores - seria vergonhosa. No meio da polémica, o procurador argentino do TPI, Moreno Ocampo conta que o seu filho lhe perguntou: "Pai, li num livro que os castelhanos mataram 90% dos índios, nos países que conquistaram na América; se houvesse TPI, tinha-los levado a tribunal?".
O campo respondeu que sim. Faltou dizer que precisava também de apresentar, em juízo, os imperadores pré-colombianos que dizimaram os seus povos, em sacrifícios humanos.
A expressão "justiça para todos" também quer dizer isso: não seleccionar arguidos, e não distinguir dentro do mal.