<p>A maioria absoluta de um só partido é uma anomalia, no sistema constitucional português. Só existiu com Cavaco Silva e com José Sócrates. O facto fica a dever-se, em primeira linha, à complicação do sistema de sufrágio proporcional, arquitectado para obter a maior representação de forças diferentes no parlamento.</p>
Corpo do artigo
Os governos minoritários, ou, melhor dizendo, com apoio minoritário no parlamento, foram assim a regra, desde 1976. Uns tiveram mandatos bem sucedidos (o primeiro governo de Cavaco, o primeiro de Guterres), outros não. Uns foram interrompidos antes do tempo, e colheram trunfos com isso. Outros foram enterrados na poeira da história.
À primeira vista, a Lei Fundamental (CRP) parece favorecer executivos sem maioria absoluta. Dá-lhes, por exemplo, a arma da passagem do programa de governo, com mera vantagem simples. Um gabinete que disponha, por hipótese, do apoio de apenas 30% dos deputados, pode ainda assim iniciar funções plenas, se o seu programa não tiver, contra si, uma maioria absoluta (Art. 192,4º). Para isso basta, por exemplo, que 50% dos restantes parlamentares se abstenham.
Da mesma forma, uma moção de censura só tem sucesso, se for aprovada por maioria absoluta dos deputados, o que dá espaço suplementar de respiração a um governo que, habilmente, possa negociar acordos ou cultivar compromissos.
Mas, na área legislativa, a CRP de 76 não criou uma vida fácil aos executivos. Desde logo, porque o parlamento continua a ser o centro da produção normativa (Arts. 164 e 165, por exemplo). O papel do governo é subordinado e residual.
Na verdade, o executivo só pode legislar, sem interferência alguma da AR, no campo da sua organização interna e funcionamento (Art.198,2). Em todos os outros domínios, o poder é periclitante. Nas áreas de reserva absoluta da Assembleia, não pode legislar. Nas áreas de reserva relativa daquela, só pode legislar mediante autorização. Nas áreas de "baldio", ou "res nullius", onde em principio possui competência concorrencial (art.198,1), arrisca-se sempre a que os seus decretos-leis sejam revogados por leis parlamentares (art. 112,2).
Pode o executivo ainda desenvolver o regime de leis da AR, mas fica conformado às linhas gerais que esta traça. E pode, no exercício de iniciativa legislativa, propor diplomas ao parlamento, através de projectos-lei, mas estes só surtem efeito, como se compreende, perante maiorias dispostas a legislar nesse sentido, e não noutro.
Por outras palavras, é na área da produção normativa que um governo minoritário precisa de reflectir melhor. De explicar melhor. De requerer melhor. De persuadir melhor.
Um governo minoritário tem de ser mais competente, transparente, verdadeiro e racional do que um executivo maioritário. Este pode ser tentado a olhar para o parlamento como um mero carimbo de decisões já tomadas.
Uma minoria governamental traduz um reforço dos poderes naturais do Parlamento. Nesse sentido, regressa às raízes do sistema semipresidencial português.
O outro fiel da balança será o chefe do Estado. A Constituição atribui-lhe, com grande latitude, a responsabilidade pela nomeação de um gabinete, que, em última análise, dependerá da sua análise da situação política, tendo em conta os resultados eleitorais (art. 187,1).
E atribui-lhe a possibilidade de, a qualquer momento, demitir o executivo. Também isto explica que se traga, para a batalha de depois de amanhã, o Palácio de Belém.
Mas essa é outra história.