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Não vêem que, ao cortar nos vencimentos, isso acabará por piorar, ainda mais, a situação de muitas empresas que vendem para o mercado interno e aumentar o desemprego?". A tentação é dizer "não, não vêem". Que vivem fora da realidade, "vidrados" em modelos, assentes em hipóteses fantasiosas sobre os comportamentos das famílias e das empresas. Passos Coelho ajuda a essa ideia. Afirmar que a redução dos custos das empresas, decorrentes da diminuição da taxa social única (TSU), lhes iria permitir baixar preços e ganhar capacidade de concorrer e, logo, crescer e criar emprego é, no mínimo, simplista. Não é que não tenha alguma razão. Se somarmos a eliminação de quatro feriados com o impacto da descida da TSU, os custos das empresas no próximo ano reduzir-se-ão 3 a 4%, dependendo do peso do trabalho nos custos totais e dos dias da semana em que cairiam os feriados. Não é o mesmo que desvalorizar o escudo em 10%, mas é alguma coisa. No caso das empresas que enfrentam a concorrência em mercados internacionais, dá-lhes espaço de manobra. Seria nesses mercados e empresas que o primeiro-ministro (PM) pensaria. Esqueceu-se de que a medida beneficia outras, que não enfrentam essas condições. Ajuda quem precisa e merece mas também quem não enfrenta concorrência ou exporta.
Apostar tudo e apenas na exportação é um equívoco. O ano em curso é elucidativo. Se, no que ao equilíbrio das contas externas diz respeito, essa política está a resultar, se o prisma de análise for o crescimento económico e o emprego o resultado é desastroso. Não obstante o incremento de exportações havido, os próximos anos não serão muito diferentes. Podem, até, ser piores. Não é crível que as vendas dos sectores tradicionais, aqueles que mais impacto têm no produto e emprego, possam continuar a aumentar ao ritmo dos últimos dois anos. Para compensar esse eventual abrandamento seria necessário que algumas das outras exportações mais badaladas, mas com pouco valor acrescentado nacional, como é o caso dos combustíveis, crescessem muitíssimo e, também, não se vê como. Adicionalmente, a saúde da economia mundial já conheceu melhores dias e as previsões não são muito animadoras.
Qualquer pessoa atenta ao mundo que a rodeia sabe isto. Como sabe que, para contrariar a quebra no produto, mais cedo ou mais tarde, será necessário estimular a procura interna, o consumo e o investimento. O que talvez não saiba é que, se isso acontecer, as importações tenderão a aumentar: muito do que consumimos e em que investimos vem de fora. Para manter as contas externas próximas do equilíbrio, se se quiser dar um empurrãozinho ao investimento, vai ser preciso manter o consumo em rédea curta. Quem mais consome, em termos relativos, são as classes de rendimentos mais baixos? Vamo-nos a eles. Para disfarçar, acena-se com um crédito fiscal, no ano seguinte. Uma hipocrisia e uma tirania insensível, forçando à poupança quem trata de sobreviver, quantas vezes com enorme dificuldade. O Governo ignora isto? É óbvio que não. Como não ignora que, a ter de encontrar meios para aumentar a receita, seria mil vezes mais justo ter subido o IRS, fazendo incidir o maior esforço nos escalões mais elevados. Só que, e não é um pormenor, isso não garantiria igual controlo sobre as despesas de consumo e as importações. E, já que não se consegue atingir os objectivos orçamentais, pelo menos que se garanta o equilíbrio das contas externas, que haja recursos para pagar ao exterior. É a moeda de troca para a troika. Talvez as exportações desacelerem? Cortem nas importações. O Estado continua a endividar-se? O país não pode. O desemprego aumenta e pioram as condições de vida dos mais desfavorecidos? Danos colaterais!
O Governo sabe tudo isto. Apenas não o pode confessar. Tal como os seus tutores da troika, acredita que este é o caminho certo. Ficará "surpreendido" com alguns maus resultados. No meio de posts piegas, o PM reiterará a sua expectativa de que "para o ano é que vai ser". Admito que, secretamente, ponha uma vela a S. Mercado, na esperança do milagre. Por este andar, vai precisar de um círio. Dos grandes!
O autor escreve segundo a antiga ortografia