<i>Um ténue fio de água que se deixa entorpecer por uma sequência em queda quase mecânica de gotas de água a conta-gotas. Já ninguém sabe da natureza da fonte mas a torneira está visivelmente velha, gasta e lavada em cobre que já reluziu em tempos como material valioso, agora com uma pequena corrente, um pequeno fio de água lavado em lágrimas, como quando choramos sem olhar para os lados, impávidos, estáticos, só aparentemente serenos. </i>
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No fundo, petrificados como granito a levar com gotas de água a fio, tanto bate até que fura diz a gente. Eis que afinal se contraria o provérbio: arde mas dói e a gente acena com lenços brancos e um sorriso da moda, não vá dar uma boa "selfie" por acaso. O que fica do que resta quando no fim percebemos que só existe esse fio de água que se deixa entorpecer por uma sequência em queda quase mecânica de gotas de água a conta-gotas?
Portugal já não tem uma selecção de futebol. Ou para já, não tem. Ou se calhar, já a gastou. Julgo que a consumiu em tempos, engolida pelos talentos individuais e pelas fraquezas que se faziam forças, passeou-a pelas fases finais com garbo após apuramentos sofridos e "play-off"s" arrojados. Essa selecção morreu porque não se lhe vê o espírito ao espelho mesmo quando é transparente como o ténue fio de água que o seu fio de jogo aparenta ter. E todos sabemos que uma selecção sem espírito é apenas um grupo de jogadores sem grande noção de como podem morrer em conjunto. Esta selecção que não aproveita um jogo com a Albânia na humidade da Veneza portuguesa para se reconciliar com os portugueses após o desastre do Mundial húmido no Brasil, não passa de uma representação da bandeira nacional com o escudo recheado a ovos-moles, não custa um euro, não vale um chavo.
E no início era verdade o que se dizia. Éramos capazes e quase acreditávamos que bastava fechar a porta para deixar de ouvir a torneira a conta-gotas. Fintávamos o destino com aquela certeza digna dos senhores feudais, ora que então somos superiores, tão superiores que só cabemos no lugar primeiro, acima o que é de cima. Mas fechamos a porta e somos assaltados por imagens piores, o som da água a correr invade este espaço e de repente é já uma corrente que transbordou sem margem para voltar a correr de feição.
A selecção tem direito ao estouro e foi directa a ele. Estourou. Paulo Bento já terá tido esse vislumbre quando optou pelo cerrar dos punhos e não pela abertura das mãos. Não convocar exclusivamente pelo mérito compreendia-se num momento em que se jogava uma fase final. Aí, teria que levar em conta um grupo já pré-definido de jogadores, homens de confiança mas - como infelizmente se viu - de pouca fé e resistência. O Mundial do Brasil foi demolidor mas apelava ao ansiado momento de reconstrução e redefinição, a tão propalada renovação que viria a caminho. Nesta fase de qualificação para o Euro"16, não convocar ou não dar a titularidade exclusivamente pelo mérito e momento de forma dos jogadores, já é algo que transcende a razoabilidade ou o mais bem-intencionado conservadorismo. Esta fase de qualificação que apura os dois primeiros classificados e permite o apuramento de grande parte dos terceiros podia ter sido o contexto ideal para uma renovação cuidada mas assumida, com toda a tranquilidade que Paulo Bento adopta já com bonomia. Mesmo que o apuramento não esteja em risco, já nem o contexto temos a nosso favor neste estado de sítio.
Sabendo que não há Ronaldo não se convoca Quaresma. Joga-se a papel químico em 4x3x3, Nani a tentar desequilibrar ao centro à procura em campo do fantasma do Ronaldo que nunca foi, retirando largura e profundidade a um ataque que dependia do acerto de cruzamentos com peso e medida para que Éder não fosse só mais uma prova de inadaptação. Renova-se a insistência em Vieirinha e faz-se bandeira de Pedro Tiba que aos 26 anos já viu um jogo da selecção no banco porque Bruma foi para a bancada quando Ruben Neves, que Lopetegui não esconde, tem quase uma década a menos e tanto ou mais futebol. Adrien não define o jogo e definha como suplente. E o actual meio-campo do Sporting não é uma base de ensaio sólida desta selecção quando tudo treme ao lado. E Carlos Mané não é melhor no 1 contra 1 num jogo com a Albânia. E vai ser assim para a Dinamarca? E afinal, "não fizemos um mau jogo" como Paulo Bento defende? Exacto, Paulo Bento defende. Uma renovação à defesa. Com Ricardo Costa, certo. Gosto de Paulo Bento. Gosto quando dá o peito às balas, se preciso for, como fez no Sporting. Não gosto deste Paulo Bento.
A água já quase não corre. Nem o fio de água com conta-gotas que antes me ensurdecia. Começo a sentir a falta.