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“Do nada, nada se cria”, diz o rei Lear a Cordélia na peça de Shakespeare. Mas é o bobo quem explica ao monarca de que modo deve proceder para que, no final do dia, o resultado da soma de dez com dez seja mais do que vinte. Assim sucede também no palco político internacional: se a guerra na Ucrânia nos havia dado lições a que não tínhamos ainda prestado a devida atenção, devemos ao presidente Trump a involuntária fineza de ter aberto os olhos aos líderes europeus, mostrando-lhes o caminho a seguir.
Para continuar a ser um espaço de liberdade, progresso e democracia, não basta à Europa ter constituído um mercado único capaz de assegurar a livre circulação de pessoas e bens. É necessário, desde logo, que os países que partilham uma moeda comum caminhem para a harmonização económica e fiscal, eliminando progressivamente a concorrência desleal no interior da Zona Euro e as iniquidades dela decorrentes. Mas é também imperioso que engendremos uma forma de assegurar a defesa da Europa e dos nossos valores de uma forma autónoma e soberana, independente de humores alheios e das suas variações.
Se, pelo caráter essencialmente económico da União, não parece realista que todos os países europeus participem equitativamente num projeto de defesa comum, as mais recentes cimeiras demonstram que é possível (e desejável) que as principais potências do continente (Alemanha, Reino Unido, França, Polónia, Itália e Espanha) assumam a responsabilidade de zelar por todos - contando com a colaboração das demais nações, mas garantindo um núcleo coeso que assegure a rapidez, a determinação, a capacidade de investimento e a previsibilidade que os restantes, até por razões históricas, não poderão proporcionar.
Edmundo, outro dos personagens do rei Lear, diz, a dado passo, que “a maravilhosa tolice do Mundo” está em culparmos o sol, a lua, as estrelas ou qualquer outra causa quando “as coisas não nos correm bem”. Em matéria de defesa, porém, bem podem os europeus agradecer a ajuda do bobo: graças ao surto autista da política externa norte-americana, parecemos estar, agora sim, no bom caminho.