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Sobre matéria política e financeira tão delicada como o é a solvência da dívida pública, eis que surge o manifesto Preparar a Reestruturação da Dívida Para Crescer Sustentadamente, subscrito por 70 personalidades. Pergunto, como reagirá o nosso Reformador, afinal, a frio? Presumo, desejo, que ele estude o conselho dos 70, não se alheie de oportunidades, talvez nascentes, de solução europeia da dívida, voe mais alto e abra asas. E entreveja, no gesto dos 70, bases e pretextos para, quem sabe, alcançar um consenso nacional mais abrangente de vontades e de ideias do reformismo, de que Portugal tanto está necessitado. Não é que a questão da dívida seja nova para o Reformador, ele conhece-a bem, porém parece que lhe tem faltado ensejo e sobejado reverência.
Por mim, embora tenha declinado o convite para subscrever o manifesto, saúdo os 70 porque, no cerne da questão, na finalíssima essência, penso que a iniciativa tem mérito de causa.
A renegociação honrada...
Defendi e defendo que a República honre a dívida. Em 2012 propus que o Reformador diligenciasse uma renegociação honrada, RH. Em 2013 retomei a ideia no livro Sobrepeso do Estado (p 67/72 e 199). O manifesto dos 70 converge, relativamente bem, com a ideia da RH. Troquei impressões com alguns dos autores e estes depois fizeram-me saber, por exemplo, que se inspiraram no "H" para, na versão final, dizerem que o que visam é uma discussão de formas de reestruturação honrada e responsável da dívida. E registe-se que ambas as propostas não advogam o "perdão de dívida".
Escrevi que o montante da RH seria função da capacidade de pagar das finanças públicas já reformadas, disciplinadas e regradas, o que até parece conjugar-se com o que, qualitativamente, agora dizem os 70, quando mencionam, e bem, a questão orçamental, por duas ou mais vezes. E quando dizem: Cada país integraria em conta exclusivamente sua a dívida a transferir e pagaria as suas responsabilidades em condições pré-determinadas adequadas à capacidade de pagamento do devedor.
Sinais europeus...
As palavras também contam. Evito falar em "reestruturação" da dívida da República. Todavia, não desconheço que esse pudor terminológico pode estar a ser pontualmente removido por força de diversas análises e propostas nascidas dentro da Zona Euro. Os 70 lembram que há sinais, movimentações, no seio da UE. O Reformador que esteja atento! Destaco, por exemplo, o precioso e ousado artigo Padre, Politically Acceptable Debt Restructuring in the Eurozone, de 2014, de há dias, em que os autores Pâris e Wyplosz apresentam uma proposta para as dívidas públicas dos países da Zona Euro, incluindo Portugal.
Os 70, o Padre e a RH...
Os 70 tomaram em alguma conta, suponho, o Padre. E em primeira leitura, julgo que o Padre também não está muito longe da RH. Mas há uns detalhes importantes que diferenciam as ideias. Vejamos. Nas três propostas, uma parcela da dívida pública passaria para uma entidade europeia (podendo ser o BCE, diz o Padre). O prazo converter-se-ia em "quase perpetuidade" na RH, em "perpetuidade" no Padre, em "40 ou mais anos" nos 70. O montante na RH seria apenas 39% da dívida total, ao passo que o Padre e os 70 convocariam mais de metade da dívida (pelo menos, a dívida acima de 60% do PIB) - e, claro está, isto é defensável numa perspectiva de quanto mais melhor. O juro sobre essa parte da dívida seria quase 2% na RH (mais precisamente, 1,9%, ver figura), seria zero, sim zero, no Padre, seria sujeito a "abaixamento significativo" nos 70, quanto, não dizem.
A modéstia reformista dos 70...
Não gostaria de ver o Reformador a entregar na Europa um documento que pede tanto (como os 70 pedem) mas se limita a tão pouco no compromisso reformista interno. A proposta não deveria ser desgarrada de diversas outras propostas, igualmente de elevada valia, que deveriam vincular o Reformador. Na verdade, a minha ideia da RH era e é parte integrante de um conjunto bastante maior de medidas estruturais, um programa multivalente, esforçado e convincente, digno do Reformador que vence o seu dilema. Incluindo a assombrada reforma estrutural do Estado. É o que tenho chamado triângulo e repto europeu do Reformador, assunto a que procurarei voltar em próximo artigo.