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Passaram ontem 110 anos sobre a data em que, na esquina da Praça do Comércio para a Rua do Arsenal, em Lisboa, o rei Dom Carlos e o seu sucessor natural foram assassinados a tiro por dois republicanos, eles próprios linchados nos minutos seguintes ao atentado. O debate historiográfico nunca conseguiu definir se este acontecimento ajudou, ou não, a acelerar a implantação da República, que viria a acontecer menos de três anos depois. Teria Dom Carlos conseguido evitar o que veio a suceder ou o destino do regime estava já marcado? Ninguém o pode dizer com segurança. A única coisa que parece evidente é que as tensões políticas e sociais que desembocaram no regicídio tinham vindo progressivamente a agravar-se e que nada indicava que o regime pudesse vir a gerar condições para passar a uma fase de maior aceitação popular, compatível com a manutenção da coroa na chefia do Estado, em condições político-institucionais sustentáveis. Bem pelo contrário.
O republicanismo, em especial nos setores maçónicos que haviam estado na base de desgaste da Monarquia, manteve, por bastantes anos, uma aura em torno dos autores do regicídio, Alfredo Costa e Manuel Buíça, tidos como mártires da causa. Com o tempo, porém, foi deixando cair discretamente essas referências, talvez por ter entendido que o culto de um ato de violência extrema era um património de memória em crescente perda de aceitabilidade pública.
É compreensível que os monárquicos portugueses continuem a olhar esta data com o sentimento de que ela representou o princípio do fim do regime em que se reviam. Porém, vendo as coisas com um mínimo de realismo, estou certo de que nem eles próprios ainda acreditam, nos dias de hoje, na viabilidade da reimplantação do regime monárquico, embora abandonar essa esperança significasse para eles desistir da própria causa.
Pode, contudo, especular-se que, se outros tivessem sido os equilíbrios no seio das forças armadas portuguesas durante a ditadura, talvez a Monarquia pudesse ter sido equacionada como hipótese. Mas Salazar, não obstante ter óbvias simpatias monárquicas, sempre considerou que esse cenário induziria clivagens entre os militares, os quais, no final de contas, eram a sua guarda pretoriana. De uma coisa não tenho a menor dúvida: se a Monarquia tivesse sido recuperada pela ditadura, teria caído com ela.
Como republicano, por mais de uma vez me tenho interrogado sobre como devo olhar o regicídio. E dou comigo a pensar que querer julgar o passado representa uma visão sobranceira por parte do presente, com os padrões de hoje a tentarem prevalecer sobre quem viveu outros tempos e outras circunstâncias. E, assim, deixo ficar o regicídio na História a que pertence.
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