A profundidade da crise que nos calhou em sorte tem o (curioso) condão de juntar insuspeita gente da tradicional Direita, como Cavaco Silva, e insuspeita gente da ortodoxa Esquerda, como dirigentes do Bloco de Esquerda. O tema - impostos sobre os mais ricos - é sempre palpipante, desde logo por ser subsidiário da velha tese segundo a qual são eles - os ricos - que devem pagar a crise. Ontem, o presidente da República deu mais um jeitinho na coisa, ao propor que se volte a pensar na tributação das heranças e doações (as únicas que, obviamente, interessam aos cofres do Estado são as dos ricos, pois claro).
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No meio de uma festa em Campo Maior, o chefe de Estado mostrou-se surprrendido por andarmos entretidos a (tentar) caçar o pilim dos magnatas. Oiçamo-lo: "É um bocado surpreendente que se discuta agora o imposto sobre a fortuna, que vários países já tiveram mas muitos aboliram, sem voltar a pensar na tributação das heranças, das doações", disse. Ele defende tal tributação, por tratar-se de "um imposto que existe na generalidade dos países e que visa corrigir a distribuição de riqueza no momento em que uma pessoa recebe por herança ou por doação algo que não ajudou a construir".
Dois comentários e uma conclusão. Primeiro comentário: o PSD aboliu, em 2003, o imposto sucessório, por considerá-lo "profundamente injusto", pois "até na morte o Estado tributava" (palavras de Durão Barroso). Paulo Portas execra o imposto, por entender que o Estado não deve esbulhar e taxar o património entregue aos legítimos herdeiros depois de anos de árdua labuta. O PS também não acha piada ao tema (em 2000, a troco do voto do PP no Orçamento de Estado, prometeu eliminar o execrado imposto). De modo que Cavaco vai ter dificuldade em fazer passar a mensagem.
Segundo comentário: é, na maioria dos casos, quase ridículo e até ultrajante considerar que os herdeiros não ajudaram a construir o que lhes é legado. Bem ou mal, nas pequenas, médias ou grandes famílias, o património é o resultado do esforço de muitos e não apenas do patriarca (ou da matriarca).
A conclusão: a situação excepcional em que o país vive reclama medidas excepcionais. Já todos percebemos que há um novo caminho, cheio de solavancos, a percorrer e que parte dele tocará (ainda mais) nos rendimentos. Creio que o trajecto far-se-á tanto melhor quanto menos imprudente demagogia e falsos moralismos se usarem, quanto menos diabolização se fizer do malvado "capital". Caso contrário, com a pressa, estaremos todos, um destes dias, a exigir, como os puros do Bloco de Esquerda, que até as cabeças de gado sejam objecto de taxação.